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Platão e os ouvidores públicos: reflexões sobre as entranhas da burocracia *

O objetivo deste artigo é trazer à reflexão o funcionamento das entranhas da burocracia, de forma a contribuir com o entendimento da dinâmica das organizações públicas. Espera-se, assim, estimular a melhoria da capacidade do ouvidor público na formulação de propostas de mudança.

Grande parte das reclamações dirigidas pelos cidadãos às ouvidorias públicas decorre da falta de harmonia dos modelos de gestão, avassalados por uma burocracia cujas entranhas, muitas vezes, temos dificuldade de perceber.

Assim, é função do ouvidor público não só colaborar para o atendimento às demandas do cidadão, bem como sugerir mudanças no modelo de gestão adotado, a partir dos inputs recebidos pela Ouvidoria ou pela capacidade de perceber a dinâmica da organização, de forma que as reclamações não mais ocorram. A avaliação de uma Ouvidoria pode ser feita, dentre outras formas, através da redução do mesmo tipo de reclamação em conseqüência de mudanças do modelo de gestão propostas pela Ouvidoria.

Para reagir a esses inputs ou perceber como se dá a dinâmica das organizações, o ouvidor precisa desenvolver sua capacidade de lançar um olhar mais minucioso ao que chamo de “entranhas da burocracia”. São essas entranhas burocráticas que conduzem as organizações para uma ação não-condizente com sua missão. Impedem de construir uma organização capaz de ir ao encontro dos anseios da população, das demandas sociais. A questão se torna mais grave quando se trata de organizações do setor público.

Como a administração é multidiciplinar, buscamos inspiração na alegoria da caverna de Platão, do livro A República, para lançarmos uma luz sobre a natureza das dificuldades do processo de gestão das organizações públicas. Assim, associamos a rigidez do modelo burocrático, predominante nos sistemas de gestão pública, aos prisioneiros da caverna de Platão. Segundo a alegoria, tais prisioneiros, por força de prisão e imobilismo, desconhecem outras realidades e só percebem uma única capaz de configurar a visão de seu mundo. Essa visão transforma as aparências em realidade e conhecimento. A metáfora conduz-nos à melhor compreensão da burocracia pública e de suas disfunções. Na alegoria, permite-se a um prisioneiro sair da caverna e ir ao encontro da realidade fora dela. Da mesma forma, metaforicamente, pode-se pensar que ao gestor público existe a possibilidade de desenclausurar-se de seu mundo burocrático e dele sair para o atendimento das demandas sociais. Podemos também refletir sobre o movimento sistêmico de toda a organização em busca do entendimento e do reconhecimento de novas realidades e sobre quanto esse processo é lento e complexo. Na alegoria torna-se difícil ao prisioneiro absorver a nova realidade. Ademais, existe a dificuldade do prisioneiro que teve a oportunidade de sair para retornar e novamente conviver com seus pares.

À semelhança da alegoria da caverna, muitas administrações públicas têm-se encontrado aprisionadas a seu modelo organizacional tradicional, em que o imobilismo só permite focar seus processos internos e não a realidade exterior. Assim, muitas organizações públicas, por terem apenas visões limitadas e imperfeitas da realidade, habituaram-se a transformar suas visões, bastante ilusórias, em única realidade.

Da mesma forma que, segundo a alegoria da caverna, os olhos do prisioneiro não podem movimentar-se das trevas para a luz sem que todo o corpo se movimente no mesmo sentido, surge a necessidade de se construir, nas organizações públicas, visão sistêmica das dimensões organizacionais capaz de permitir aos gestores públicos compreender a interdependência entre as múltiplas variáveis de seu contexto, de forma a alcançar a integração e a harmonia das diversas dimensões da organização.

As mudanças, portanto, passam a se fazer necessárias. Como observa Luck (2000:12), “no geral, em toda sociedade, observa-se o desenvolvimento da consciência de que o autoritarismo, a centralização, a fragmentação, o conservadorismo e a ótica do dividir para conquistar, do perde e ganha, estão ultrapassados, por conduzirem ao desperdício, ao imobilismo, ao ativismo inconseqüente e, em última instância, à estagnação social e ao fracasso de suas instituições”.

A pressão social crescente sobre o Estado, no que se refere ao atendimento das demandas por bens e serviços públicos de qualidade, exige dos governantes o uso de instrumentos de gestão para criar e manter a eficiência da máquina pública. Os gestores percebem ainda que a legitimidade da ação dos poderes públicos se baseia, hoje, mais na capacidade de dar respostas às demandas dos setores que estão afetos ao âmbito de sua atuação do que na teórica legitimidade ideológica ou constitucional (Subirats, 1992). Nesse sentido, procuram implementar estruturas organizacionais e modelos de gestão que permitam superar os entraves criados pela administração burocrática.

Com essa visão – longe da histeria reformista que assola as administrações públicas em todo o mundo e das pressões a que estão submetidos os administradores públicos por resultados em curto prazo – cabe aos dirigentes se movimentar para implementar um novo modelo de gestão e organização, de forma a ultrapassar obstáculos criados pela administração burocrática, legitimando politicamente os processos de reforma administrativa.

Assim, usando-se mais uma vez a metáfora da caverna, duas questões tornam-se importantes na saída das trevas à luz:

1- Investir na ação política de forma a dar legitimidade e continuidade às reformulações para propiciar implantação gradativa de mudanças, evitando-se, com isso, as dificuldades que surgem com “reformas globalizantes” na administração pública, marcadas por diversidade e grande quantidade de elementos, por vezes com lógicas conflitantes com o mesmo estímulo pretendido (Subirats,1992).

2- Evitar a tentação de ações de curto prazo, já que a experiência internacional mostra que, embora essas soluções apresentem resultados imediatos, em longo prazo seus efeitos são extremamente perversos (Kettl, 1998).

É claro que a implantação de novos modelos ainda poderia encontrar enormes problemas, principalmente culturais, porque, como se pode inferir da alegoria da caverna, movimentar-se das trevas para a luz implica imenso risco aos padrões culturais, de crença e de poderes estabelecidos. Por mais que as lideranças consigam libertar-se da caverna para mostrar essa nova realidade, muitas vezes a rigidez da velha cultura ainda fala mais alto.

Portanto, o processo de mudança organizacional implica rupturas no modo de pensar, sentir e agir na Administração Pública, segundo predominâncias político-ideológicas, conducentes à quebra do estado de direito e de valores prevalecentes na sociedade em determinado momento. Em outras circunstâncias, conforme entendimento mais gradativo em que se rompe o tradicional em algumas de suas dimensões, resguardando-se a permanência de outras, o processo de mudança ocorrente na sociedade ou na organização buscará garantir sempre o equilíbrio, a intermediação e a fuga aos extremos e às contradições. Independentemente da visão, relevância e objetivos de qualquer mudança, um ponto inequívoco e indispensável ao êxito consiste na percepção de que é fundamental não só sair da caverna e a ela retornar, mas demolir-lhe as paredes, quebrar-lhe as rochas e derrubar-lhe qualquer cobertura existente, transformando-a em espaço aberto, acessível aos que nela permaneceram prisioneiros e a todos os que só a viam de longe.

O espaço aberto da caverna exige, para sua manutenção em prol da cidadania, intensa atividade participativa de todos, notadamente dos que detêm poder decisório, cujas ações têm efeitos muitas vezes definitivos sobre indivíduos-cidadãos e segmentos – inclusos ou exclusos – da comunidade.

Requer, também, rupturas ousadas na gestão do sistema, a fim de se impedir a reconstrução da caverna por operários desqualificados. Há de se saltar da administração aprisionante, dominadora e castradora para a gestão libertária, inovadora e empreendedora.

Por fim, ouvidor é o prisioneiro que saiu da caverna e a ele cabe a difícil tarefa de levar a luz ao seu interior, manter esse espaço aberto, propondo rupturas ousadas na gestão do sistema, impedindo sua reconstrução. Seu papel é colaborar na transformação das organizações públicas de forma permanente para que se tornem mais ágeis, propiciando, assim, um serviço público de melhor qualidade e que vá ao encontro dos anseios da sociedade. Não é uma tarefa fácil, mas a compreensão de sua dinâmica certamente ajudará nessa missão, que é, em última instância, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

*O autor agradece as contribuições de Paulo Reis Vieira, PhD em Administração Pública pela Universidade do Sul da Califórnia, Fernanda Paes Leme P. Rito, economista pela UFRJ e Marcos Dantas Hecksher, Chefe da Divisão Editorial do IPEA/RJ

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