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O comportamento contraditório e a boa-fé

Autor:  José Ricardo Armentano
Pois é! Não há nada mais irritante do que o comportamento contraditório. Principalmente naquelas situações em que as soluções são pautadas pelo odioso critério conhecido como…  dois pesos e uma medida!
Imagine, por exemplo, aquele simpático vizinho que, aos finais de semana, promove sistematicamente festas demoníacas ao som – deveras elevado – do mais puro funk dos morros cariocas. Por mais que esse gênero musical até possa ser considerado uma expressão da cultura popular, ainda assim, convenhamos, é preciso ter estômago e nervos de aço para aguentar os meigos versos do funk das cachorras!
Imagine, ainda, que você, saudoso daquele tempo em que os seus cabelos eram fartos, resolve reunir velhos amigos integrantes da sua antiga banda de garagem cover dos Rolling Stones, para, juntos, reviverem aquela época em que todos sonhavam em ser  o Mick Jagger dos trópicos. E, dando continuidade a essa vibeimaginativa, imagine que lá pelas tantas, naquele exato momento em que o refrão  I can get no satisfaction está reverberando em sua plenitude, aparece inesperadamente aquele – já não tão simpático – vizinho funkeiro, de chinelo rider amarelo-limão, bermuda da bad boy e camiseta regata, para… reclamar do barulho! Convenhamos, é o fim da picada!
Se na vida cotidiana esse tipo de comportamento contraditório já é irritante, imagine só em uma relação contratual, onde se exige, como decorrência do princípio da boa-fé, que as partes contratantes se comportem de forma ética e leal.
Infelizmente, por conta da própria natureza humana, nem sempre isso acontece. Aliás, não é uma coisa do outro mundo verificar, em uma relação contratual, condutas contraditórias, com o mal disfarçado fim de se obter uma abusiva vantagem. Inclusive, esse tipo de comportamento incoerente, contraditório e, consequentemente, deveras abusivo, é facilmente detectável naqueles casos envolvendo, por exemplo, o seguro-saúde.
O problema todo se dá naquelas hipóteses em que o segurado, mesmo tendo honrado com retidão e sacrifício, por meses e até anos a fio, o pagamento das respectivas mensalidades, tem o pedido de cobertura negado pela seguradora, sob a justificativa de que o caso envolve uma doença preexistente ao contrato. A conduta contraditória e abusiva, nesse tipo de situação, está justamente consubstanciada no fato de que, por ocasião da celebração do contrato, as seguradoras, de um modo geral, não submetem, tampouco exigem dos segurados, qualquer tipo de exame médico. Em outras palavras, elas são muito diligentes e solicitas em nada exigir e em tudo aceitar por ocasião da contratação, e bastante ávidas na hora de receber as parcelas do prêmio, pagas invariavelmente com o árduo suor do trabalho dos respectivos segurados. Porém, são extremamente exigentes, rigorosas e minuciosamente criteriosas nas eloquentes justificativas que as levam a negar pedidos de cobertura desses seguros-saúde.
Esse tipo de conduta abusiva e odiosa felizmente não encontrou guarida em nossos tribunais, que têm decidido, de forma reiterada, que se não houver demonstração cabal da má-fé do segurado a respeito do conhecimento da doença por ocasião da celebração contratual, não poderá o segurador – abusiva e maliciosamente – eximir-se das respectivas obrigações, principalmente naqueles casos em que não exigiu, tampouco submeteu o segurado a exames prévios, de modo a criar nele falsas e ilusórias expectativas de regularidade, de amparo e de segurança, alimentadas paulatina e progressivamente com o pagamento das parcelas do prêmio.
A esse respeito, manifestou-se com propriedade o Superior Tribunal de Justiça: “aufere vantagem manifestamente exagerada, de forma abusiva e em contrariedade à boa-fé objetiva, o segurador que, após longo período recebendo os prêmios devidos pelo segurado, nega cobertura, sob a alegação de que se trata de doença pré-existente” (REsp. 1080973/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; j. 09/12/08).
Em conformidade com o entendimento consolidado por essa ilustre Corte, “… a seguradora deve provar a má-fé do segurado, sendo certo que quando não realizado o prévio exame, não pode escusar-se do pagamento ao argumento de que haveria doença preexistente” (Resp. 651.713/PR; Rel. Min. Carlos Alberto Menezes; DJ 23/05/05).
Tal entendimento  tem por fundamento o princípio da boa-fé, onde todos, conforme bem pondera o ilustre professor Ruy Rosado Aguiar Junior, tem o dever de guardar fidelidade à palavra dada e não frustrar ou abusar da confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas. 
De uma forma simplista, é possível afirmar que a boa-fé nada mais é do que a exigência de uma conduta ética e leal nas relações humanas. Mas não é só isso! Trata-se de um princípio basilar das relações contratuais, vez que, por força dele, espera-se e exige-se que as partes contratantes, tal como no exemplo entre o segurado e a seguradora, se comportem com lealdade e cooperação recíprocas, de modo a absterem-se de qualquer conduta que porventura venha a frustrar as respectivas e legítimas expectativas.
Em linhas gerais, podemos afirmar que a boa-fé tem duas acepções: uma subjetiva e outra objetiva. 
A boa-fé subjetiva está consubstanciada em um estado de ignorância a respeito de uma situação jurídica. Mais especificamente, aquele que age com boa-fé subjetiva acredita piamente ser titular de um direito que existe apenas na aparência. Nessas circunstâncias, consolida-se favoravelmente uma situação jurídica em prol de quem subjetivamente agiu de boa-fé. Um exemplo disso é a proteção conferida ao adquirente que, de boa fé, adquire um imóvel penhorado, cuja penhora, contudo, era desconhecida, em virtude dela não ter sido registrada.
Já a boa-fé objetiva é uma verdadeira regra de conduta contratual, consubstanciada no comportamento ético e leal das partes contratantes, que lhes impõe o dever de se comportarem de forma coerente, isentas de contrariedade.  Nesse sentido, o nosso ordenamento jurídico é claro ao determinar aos contratantes a obrigação de observar, tanto na celebração, quanto na execução contratual, os princípios de probidade e boa-fé (CC, art. 422).
E é justamente por força dessa boa-fé objetiva que o – agora odiado – vizinho funkeiro não poderá exigir do vizinho roqueiro  um comportamento que ele mesmo não adota para si, tampouco postular judicialmente qualquer tipo de indenização pela insatisfação que ele experimenta ao ouvir o hit do rock mundial Satisfaction.  De igual modo no que concerne à empresa de seguro-saúde, que em virtude da boa-fé objetiva, não poderá, de forma contraditória e abusiva, furtar-se ao cumprimento das suas obrigações contratuais, sob a justificativa de uma doença preexistente, sem que ao menos tenha exigido ou diligenciado, por ocasião da respectiva contratação, exames médicos que comprovassem tal condição do segurado.
Por se tratar de um princípio basilar das relações jurídicas, a boa-fé objetiva impõe às partes contratantes, sem exceção, o dever quanto ao comportamento coerente e isento de contradições, sob pena de caracterização de conduta desleal e abusiva, proibida e punida na forma da lei.
José Ricardo Armentano é advogado da Morad Advocacia Empresarial

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