Você deve ter ouvido falar do SOPA, o Stop Online Piracy Act, um projeto de lei que está para ser votado no Congresso americano e que propõe grandes mudanças na forma e autoridade de detentores de direitos intelectuais. Empresas que prestam serviço de acesso a internet serão consideradas culpadas de difundir conteúdo pirata caso concedam acesso a sites com conteúdo suspeito, sendo assim elas teriam que blquear o acesso a esses sites para evitar punições, algo semelhante já acontece na China. A proposta de Lei prevê que os grandes sites de conteúdo, gigantes como Google, Facebook e Twitter, seriam responsáveis pelos conteúdos protegidos por direitos autorais publicados ou compartilhados por seus usuários. Tem gente a favor, mas o movimento contra a lei é bem mais visível. Nesta quarta, por exemplo, o site americano da Wikipedia simplesmente fez blackout. E outros sites colocaram tarjas e outras formas de demonstrar seu descontentamento.
Nós, brasileiros, também podemos ser afetados por essa lei. Por isso, achei bem interessante reproduzir a entrevista que o Adnews fez com o professor da ECA/USP Luli Radfahrer. Ele não só é radicalmente contra o SOPA, como acha que o projeto mina a criatividade. Segue a matéria (assinada por Leonardo Pereira e Marcelo Gripa):
“AdNews: Você acha o SOPA bom ou ruim? Por quê?
Luli Radfahrer: É uma merda, é claro. O Brasil tem uma das poucas internets no mundo inteiro que é verdadeiramente livre, por causa do trabalho feito bem no comecinho, pelos caras que inventaram o Comitê Gestor da rede no Brasil. A regulação da internet no Brasil é uma das melhores do mundo. Na hora em que os Estados Unidos “chinesificam” o seu mercado de internet, eles ferram com o mundo inteiro. Os EUA são um hub, você sabe muito bem o que acontece quando se fecha o aeroporto de Congonhas: dá uma merda no Brasil inteiro porque quase tudo quanto é voo passa por ali; se você quer parar o Brasil aéreo, para Congonhas, Guarulhos, Galeão, Santos Dumont e Brasília: ninguém mais voa no Brasil pra lugar nenhum. Se você inventa de censurar a internet nos EUA – não tem outro nome, é censurar -, não fecha só lá, fecha todo mundo que é top-level domain dos EUA, e isso quer dizer todo mundo que é .com, ou seja, passa a ter permissão para derrubar qualquer site .com, e aí já dá para imaginar o tamanho da merda. Quando uns idiotas fazem isso na França ou na Espanha há uma coisa de pouquíssima relevância. Que site que você precisa está em espanhol? E em francês? Com os EUA é diferente, então o mundo não pode deixar que eles façam isso. Por exemplo, o cara pode censurar a Wikipedia. A gente já está caminhando para uma época de concentração que é muito ruim. Por exemplo, os sites em que você navega no seu dia a dia são, a maior parte deles, privada. E como é uma propriedade privada o cara pode fazer o que ele bem entender – como o Google e o Facebook. Este ano o Facebook chega a 1 bilhão. Se o Zuckerberg quiser tirar aquela merda do ar ou quiser censurar um usuário ele pode, na hora em que ele quiser, e ninguém pode falar nada porque aquilo é propriedade dele. E ele está coberto de razão porque a rede é dele, então se o critério que ele usou para te chutar de lá é completamente injusto, azar, vá reclamar com o papa. Se você estiver numa festa na minha casa e eu não fui com a tua cara eu te ponho pra fora, porque a casa é minha.
É justa toda essa reclamação em torno do projeto?
Sem dúvida, porque ferra tudo aquilo que a gente usa como forma de ativismo, como forma de manifestação política. Não teria, por exemplo, o Occupy Wall Street, se tivesse SOPA, porque iriam inventar qualquer desculpa debaixo do braço da lei pra fechar os sites que usam isso. Do mesmo jeito que a partir do instante em que os EUA têm, a Cia pode ter e adeus Primavera Árabe. O SOPA é um instrumento de vigília e é um instrumento arbitrário de vigília, por mais que as intenções sejam nobres. Um exemplo: a polícia não tem o direito de entrar na minha casa a não ser que eles tenham um mandato de busca. Você não tem, sob domínio da lei, o poder de entrar na minha casa e por isso eu consigo ter a liberdade de pensar aqui dentro. A partir do instante em que, com a desculpa de ter ali usuários de crack, você dá à polícia o direito de entrar na casa de qualquer um na hora em que ela quiser e confiscar o que ela bem entender. Qual é a chance de não ter abuso em cima dessa lei? Zero! Todo mundo vai abusar. Por mais que os argumentos que deem origem ao SOPA tenham fundamentos de valor, não se pode aplicar uma lei desse porte. É mais ou menos assim: você tem uma imprensa de má qualidade, então vou colocar uma lei que censura a imprensa como um todo. Não pode acontecer, não podem dar a eles esse direito.
Este lobby em torno do enfraquecimento do projeto vai acabar com ele?
Espero que sim. Isso me parece muito uma bobagem, que nem o deputado [Eduardo] Azeredo, aqui no Brasil, fez. Um velho que não entende merda nenhuma da internet e que talvez até tenha tido uma boa intenção, mas que os resultados vão ser extremamente daninhos. Boa parte do bom conteúdo da internet que a gente tem vem do fato de ela ser libertária. Se você começa a entupi-la de regras, vai enfraquecer a qualidade do conteúdo. Rádio e televisão são concessões do governo, então você tem que ser muito rico ou amigo de um deputado para ser dono de um rádio ou de uma televisão. O que acontece com isso é que você tem um império que ninguém pode meter a mão, e ninguém consegue desafiar um império desses porque eles são grandes demais. Por que eu, cidadão comum, não posso ter uma emissora? E pior ainda: se eu fizer uma emissora pirata, eu sou preso com crime inafiançável. Isso é na verdade restrição ao direito de expressão.
A aprovação do SOPA não caminha, finalmente, para o entendimento da internet como um campo legal, com regras, mais justo?
A maior parte da internet que você usa tem regras. Se você pensar bem, boa parte da internet que não tem regras é obscura, é uma internet de pouquíssimo acesso e, bem ou mal, ninguém vai lá. Se há problemas com essa internet suja, você tem que ter boas formas de achar isso, mas não pode colocar uma lei-tampão. Outro exemplo: Em Foz do Iguaçu, a polícia é completamente incompetente pra controlar a fronteira, então eles colocam raio-X no aeroporto: já que se pode entrar no país por diversas formas porque a polícia é ineficiente, então você não vai conseguir passar do aeroporto. Se eu fui de São Paulo a Foz do Iguaçu e estou voltando para São Paulo, eu passo pelo mesmo escrutínio ditatorial que um cara que atravessou a fronteira – isso é completamente ilegal. Tem um monte de gente que chega de alguma outra cidade a Foz do Iguaçu, não cruza a fronteira e tem a sua câmera confiscada por um policial ganancioso sob desculpa de não ter provas de que o produto veio do Paraguai. O SOPA é uma lei muito arbitrária e forte, e isso não pode acontecer. Não quer ter pirataria? É muito mais fácil aplicar pressão em cima dos provedores de acesso e tentar regular downloads: se um indivíduo tem um número muito grande de downloads durante um período muito específico, vai lá olhar o indivíduo para saber o que ele tem. E aí, com um screenshot daquilo você simplesmente interrompe ele. Mas não pode haver uma lei geral que eu possa, arbitrariamente, sob um motivo qualquer, desligar a chavinha.
O Brasil corre o risco de entrar nesta SOPA?
Se os EUA não entrarem, eu acho muito difícil a gente entrar. Se os EUA entrarem, pouco importa a gente entrar ou não, porque boa parte das coisas que você acessa são .com, .org. Se tem um sistema de vigilância fraco, não pode revistar todo mundo. Esse tipo de lei não pode existir.
O que pode ser feito para coibir a pirataria, já que é a principal bandeira deles?
Vender barato. Pode ver que produtos como os da Apple App Store, eles vendem música a US$ 1 e despencou a pirataria. Muita gente hoje não baixa mais música, isso é coisa de velho, muita gente hoje ouve rádio online, que paga os direitos do artista e resolveu o problema. Não adianta piratear música porque se eu fizer isso eu vou ter uma pilha de lixo no meu HD que eu não vou conseguir transmitir no meu iPod, então uso uma rádio online e recebo informação do outro lado. Quer combater a pirataria? É muito fácil, basta vender barato, isso agiliza a cadeia. Isso aí é um bando de nego barrigudo que morre de medo da competição com os independentes. Veja o Adnews, por exemplo. O site não existiria se dependesse da estrutura tradicional de distribuição e de produção.
Então está nas mãos da própria indústria do entretenimento – que, afinal, é a principal apoiadora do SOPA?
Faz algum sentido a Madonna ser o artista predileto de um país como o Brasil ou como a Nigéria, o Senegal, que são países produtores de música de alta qualidade? Não. Na década de 1950, se você viajasse a um país estrangeiro, você conhecia a música local; hoje em dia você faz isso e todo mundo conhece Michael Jackson. Isso é errado e agora esses caras estão querendo defender a reserva de mercado deles, que é tão bizarra quanto os salários dos executivos e dos profissionais. A partir do momento em que o cinema já não vale tanto a pena ser feito, vai haver um monte de produções nacionais de qualidade e uma produção cultural muito mais rica. Pirateia-se, em primeiro lugar, porque é fácil, mas principalmente porque não se acha uma produção local de qualidade no lugar das estrangeiras. E por que não acha? Porque no Brasil existe a Globo e porque lá fora você vê essa indústria enorme. Se eu sou um artista e quero divulgar meu trabalho e ganhar dinheiro em show, não posso fazer nada a não ser aparecer no “Faustão” ou no “Caldeirão do Huck”. Isso é bizarro. Esse tipo de lei, na verdade, só emburrece o planeta e diminui a produção criativa.
Como seria se isso acontecesse por aqui? A quem mais interessaria e a quem menos interessaria?
A única situação em que vale a pena pensar é a seguinte: não vingou nos EUA e vingou aqui. Seria uma excelente notícia para os grandes grupos de mídia, porque qualquer blog que falasse mal da Folha de S.Paulo, por exemplo, ou falasse mal da Globo – ainda mais agora que está todo mundo descendo o pau na bobagem que aconteceu no Big Brother Brasil e na imbecilidade do Bial – o que ia acontecer? Um cala-boca. É só você pensar em Globo, em Abril, em Folha, Estado… Esses caras têm muito a perder com os blogs e muito a ganhar com qualquer tipo de restrição, principalmente porque são esses os críticos. A Björk faz um show em Pequim, termina cantando “free Tibet! Free Tibet!”. O que acontece? A China bloqueia “Björk”, você não encontra ela em conteúdo nenhum chinês por causa disso que ela falou. A partir do instante em que eu tenho a mão na tomada e qualquer coisa, eu puxo. Não tem mais critério nenhum. Se acontecesse isso no Brasil e não acontecesse nos EUA, quem iria se beneficiar muito são os grupos como o Positivo, por exemplo, porque todo conteúdo educativo estaria nas mãos deles, grupos como Globo e Abril, porque todo conteúdo informativo está nas mãos deles. E qualquer um que se opusesse poderia ser rapidamente bloqueado porque esses caras têm advogados riquíssimos. Qualquer lei de restrição é uma lei ruim. A gente lutou tanto tempo por uma liberdade na rede, qualquer restrição é uma estupidez.”