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Um dia na vida

Ele estava sentado em sua poltrona confortável. A poltrona era muito confortável. Ele se sentia muito confortável. Sempre se sentiu assim, apesar de não se lembrar do que, no caso, seria sempre. No braço da poltrona confortável, um lápis, ordinário, largado lá como se alguém o tivesse perdido ou até deixado lá de propósito por seu estado miserável e pouco valor.

Sentado em sua confortável poltrona, ele olhava a sua frente, um parede branca, muito branca, muito confortável de se ver, simples, bonita até e, em sua pureza branca, parecia ser perfeita, parecia ser indefectível.

Ele olhava a parede branca e em sua mente também tudo estava branco, como sempre. Os mesmos pensamentos, os mesmos sentimentos, o mesmo branco, a mesma parede branca.

Olhou para o lápis, olhou para a parede e de repente algo não fazia sentido. Ele se remexeu em sua poltrona confortável, não sabia ao certo o que era. Um calor, um frio, um aperto um sentimento perdido. Ele não sabia o que era. Remexeu-se novamente. Aquele lápis.

Não se sentia tão confortável em sua poltrona superconfortável. Olhou a parede branca e também ela não lhe parecia mais tão confortável. Era inconcebível o que sentia e pensava. Ele queria se levantar.

Sentiu-se cansado, sentia a dor de estar perdendo algo valioso, sentia que se perdia no branco daquela parede e ainda sentia, ao seu lado, a presença do lápis. Vou levantar, pensou, e depois de muito esforço, ficou sentado.

“Estou confortável”, dizia a si mesmo. Contudo sua cabeça doía, seu peito doía e seus olhos ardiam da luz ofuscante que emanava da parede branca.

Tudo estava parado, como sempre, menos algo dentro de si mesmo, que sentia como se fosse um corpo estranho. Deu um comando a si mesmo. Levante-se! Vamos, levante-se! E nada.

Tentou se sentar mais confortavelmente, segurou o lápis com força, apertou os olhos para não ver o branco, e dentro de si, tudo ficou preto. O branco não era bom, o escuro tampouco, faltava cor em sua vida. Permaneceu ali imóvel, procurando algo naquela negritude dentro de si, e foi quando escutou uma voz: “Levante-se homem”.

Ele se esforçou muito, muito mesmo, e ficou de pé. Suas pernas não sabiam mais andar. Andou de olhos fechados, no escuro, trôpego, o que lhe pareceu uma eternidade, e sentiu como se todo o branco passado também tivesse sido eterno.

Topou com algo. Abriu os olhos. Era a parede branca. De perto ela não era tão bela e nem tão branca. Fechou os olhos, tudo preto. Abriu os olhos, a parede, olhando de perto viu marcas. Cortes, ranhuras, aqui e ali fissuras, umas rasas outras profundas. Prestando mais atenção viu que havia frases escritas, algumas ilegíveis em meio a remendos da parede, em algumas outras conseguia se ler boa parte. Encontrou uma frase aparentemente inteira – “Você começa a vencer seus defeitos de olhos fechados”- ficou curioso. Logo mais acima outra – “A melhor conversa é aquela com você mesmo”.

Deitou-se para ler frases lá embaixo e, as linhas que leu foi como um chute no estômago, ficou sem ar- “Você é burro moleque”- e logo depois- “Você tem que ser alguém na vida menino”.

Soergueu-se e ainda zonzo inspecionou o resto da parede. Seus olhos vermelhos enxergavam, como através de um vidro embaçado, de várias formas, seus defeitos, vícios, todas as burradas que cometera, seus menores e maiores pesadelos, e tudo que falou e fez de mal. Toda mentira e todo julgamento sentido.

Contudo ali também estavam seus sonhos, grandes e pequenos, virtudes, talentos, tudo que fez de certo, de bom e de belo.

Parecia lhe que as frases vinham e iam, trocando de lugar e tempo, até que uma se destacou a sua frente como um letreiro em neon – “Você só vence seus defeitos de olhos bem abertos”- e ainda estava pensando no que queria dizer aquilo quando teve uma ideia. Subir na poltrona e ler o que estava escrito lá em cima. Devia ser o futuro.

Puxou a poltrona com esforço, fazendo muito barulho, riscando o chão limpo, liso, brilhante até bem próximo da parede. Subiu também com muito esforço e mais ainda para equilibrar-se. Olhou a parede de lado a lado e, nada. Voltou e perscrutou cada centímetro, como quem investiga um mistério divino e, ali estava mais acima uma frase, escrita como se fora digitada, porém em fonte tão pequeninha que não era para ser lida.

Quando finalmente conseguiu ler quase caiu da cadeira, nem tanto pela posição, mas porque foi um chute mais forte ainda no estômago. Estava escrito- “Está na hora de crescer garoto”

Desceu puxando o ar que desapareceu. Em sua cabeça, um som em crescendo que lembrava o Mi Maior frenético da orquestra no meio e no fim de “A Day in the Life” dos Beatles, sem o alívio final do som do acorde nos três pianos se esvaindo lentamente, como sangue em um corpo aberto. “He blew his mind out in a car.”

Ouviu um grito. Havia alguém atrás da parede branca pedindo ajuda. Mais e mais gritos de desespero, sofrimento e dor atravessaram aquela parede até então uma muralha silenciosa. O que ele podia fazer? Nada, pensou. Em um primeiro momento sentiu raiva do seu estado de fragilidade. Aquilo foi crescendo, crescendo e crescendo até que sua impotência  se tornou uma ira incontrolável.

Jogou a poltrona superconfortável contra a parede, chutou-a e socou-a até perder suas forças e ainda batendo sua cabeça contra ela, chorou. Chorou muito. Chorou tudo que não havia chorado até então. Todos os erros, todas as mortes, nascimentos, aniversários, todas as dores. Todos os milagres, bênçãos e graças. Encostado contra a parede chorou até secar.

Ele abriu os olhos e na sua frente uma frase- Você não precisa somente ler, você também pode escrever sua vida- e foi então que sentiu a novamente uma presença, olhou para baixo e viu aquele lápis ordinário esquecido no braço da poltrona.

Pegou-o e pela primeira vez segurou-o na posição para escrever que aprendera no pré-primário. Saberia escrever? O que escrever?

Um pedido de socorro talvez. Isso. Um pedido de ajuda. Escreveu- “Que a dor daqueles que sofrem atrás da parede seja curada”, e depois – “Que todo sofrimento seja curado”.

Sentiu então, amor. A parede parecia agora uma nuvem branca que ele poderia atravessar quando quisesse. Passou a mão como que afastando o nevoeiro e viu pessoas do outro lado.

Sem rostos definidos, de várias idades e tamanhos, movimentando-se para lá e para cá, o que era estranho, pois não lhes via os pés. Em meio à névoa ele sentia que sofriam.

Sentiu de novo seu coração aquecer e resolveu escrever na nuvem mesmo – “Criador do universo repare nossos erros, encerre nossa pobreza e cure nossa dor”.

Fechou os olhos de dor e viu algumas cores. Azul, amarelo, vermelho, verde. Tão lindas cores que esqueceu se da dor, da parede, de si mesmo.

Abriu os olhos. Resolveu reescrever toda a parede. Virtudes por cima dos defeitos. Sonhos por cima dos pesadelos. Orações por sobre todas as imprecações. Pedidos de misericórdia por todos que sofreram, sofriam e sofrerão e que ele nunca deu a mínima até então.

Letras que formavam o ódio, a inveja, a cobiça, o poder, a vaidade, o preconceito, a morte foram sendo substituídas formando palavras de amor, de caridade e de vida.

Quando se cansava, sentava-se em sua poltrona, cada vez mais confortável e fechava os olhos. Todos aqueles os quais amava desfilavam a sua frente e lhe sorriam. Atrás deles um céu de puro azul, toda sorte de flores, pássaros e cores e um sol grande, lindo, que não queimava, apenas fluía com toda sua vida atravessando os corações de todos.

Um dia, como outro qualquer, abriu os olhos e a parede se transformara em um espelho. Ele levantou-se e caminhou até si mesmo sorrindo. Estava terminando.

Em seus dedos segurava um toquinho de lápis.

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