Um panorama atual do recall

Autor: Péricles d´Avila Mendes Neto
É consenso entre aqueles que militam na área de Direito do Consumidor que a legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo, a despeito de transcorridos mais de 20 anos desde que sancionada em 1990 a Lei nº 8.078, que criou o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nesses anos todos, o Poder Executivo Federal também tratou de expedir decretos para regular determinados temas, e ainda o Ministério da Justiça editou Portarias com regras específicas para as campanhas de chamamento, denominadas recalls. O Poder Judiciário também não descurou da proteção ao consumidor, e, nos casos concretos em que é chamado a decidir demandas coletivas ou individuais, tem respondido prontamente, inclusive quanto aos novos temas que lhe são apresentados, como nos casos relativos a comércio eletrônico, proteção de dados e publicidade infantil.
Como se vê, a defesa do consumidor, alçada à condição de direito fundamental e ao mesmo tempo de princípio geral da atividade econômica pela Constituição Federal (arts. 5º, XXXII, e 170, V), manifesta-se de forma efetiva pelos três poderes da República, cada qual ao seu modo, mediante a edição de leis, expedição de regulamentos e decretos, e o julgamento de litígios.
Uma análise mais detida revela que alguns temas foram “amadurecidos” nesses anos de vigência do CDC, vis-à-vis a equação entre efetiva proteção do consumidor e, de outro lado, o estabelecimento de padrões objetivos de conduta pelo fornecedor, que se ressente de segurança jurídica em determinadas situações. O instituto do recall oferece exemplos concretos dessa nova realidade, conforme se indicará. 
As normas aplicáveis ao recall estabelecem obrigações aos fornecedores para que estes tomem todas as medidas necessárias à informação do consumidor e de autoridades e também à retirada do mercado de consumo de produto ou serviço que ofereça risco à saúde e segurança. O recall está previsto no artigo 10 do CDC e é regulado pela Portaria nº 487/2012 do Ministério da Justiça. 
Exemplo relevante que se apresenta acerca do amadurecimento do instituto do recall se refere ao conceito de “imediatidade” de sua realização, isto é, do prazo conferido ao fornecedor para que ele comunique a periculosidade de produto ou serviço às autoridades competentes e aos consumidores. O CDC propositalmente não estipulou prazo[1][1]; preferiu fazer uso do termo “imediatamente”, advérbio de tempo que designa algo que ocorre sem demora ou interrupção. Na prática, caberá ao intérprete julgar aquilo que lhe pareça ser imediato.
Assim é que, no passar dos anos, a jurisprudência consumerista afastou o estabelecimento de um prazo fixo e o subjetivismo para decidir se uma campanha de recall teria ou não sido realizada “tempestivamente”. Com base nas circunstâncias concretas e objetivas dos casos examinados, e fundando-se nos princípios da razoabilidade e da finalidade da norma, dentre outros, as Cortes brasileiras têm decidido pontualmente sobre o atendimento ou não do dever de “imediatidade”. 
 
É o que se observa de decisão[2][2] proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, TJSP, ao examinar ação proposta por montadora de veículos contra o Procon/SP, com o objetivo de anular multa imposta em razão de suposta demora na realização do recall. Ao manter a sentença de procedência da ação e assim anular o auto de infração lavrado contra a montadora, o TJSP entendeu que 77 (setenta e sete) dias seria um prazo razoável para a adoção das medidas de uma campanha de chamamento, tendo em vista as muitas atividades envolvidas na estruturação física, mercadológica e promocional de um recall, inclusive no tocante à necessidade de importação de peças e aos trâmites de logística empresarial necessários. Mais do que isso, o TJSP afirmou categoricamente que, “pela simples leitura do texto legal (§1º do artigo 10 do CDC), ressuma evidente não ter sido estabelecido, expressamente, prazo certo, de sorte que a expressão imediatamente deve ser interpretada caso a caso”.
Em outro caso, julgado em março de 2013, o TJSP[3][3] também entendeu que, a despeito de decorridos cerca de 5 (cinco) meses entre a detecção do problema e a respectiva comunicação às autoridades, o conceito de “imediato” previsto no CDC foi atendido, porque, dentre outras providências, foi necessário “o treinamento de mão de obra, compra e estocagem de peças, campanha de âmbito nacional, além da obrigatoriedade de importação das peças que exige aquisição, frete, desembaraço aduaneiro, etc.”.
Decisões como essa revelam não só o amadurecimento do tema no Brasil, mas também a sintonia com outras jurisdições que também regulam o instituto do recall e que não estipulam um prazo para o início da campanha de chamamento, como por exemplo, no caso da Alemanha e da França. 
Não se ignora que alguns países estabelecem um prazo rígido para a comunicação dos fatos às autoridades, como é o caso do Japão (10 dias) e do Egito (7 dias). Outros, como os Estados Unidos, estipulam o prazo de até 24 horas após o recebimento de informação que razoavelmente ampare a conclusão de que o produto não está em conformidade com qualquer regra ou padrão de segurança e contém um defeito que possa causar um perigo substancial, ou criar um desarrazoado risco de lesão ou morte.
Também é interessante notar que a legislação alemã (Produktsicherheitsgesetz) indica expressamente que a mera “preocupação”, sem indicações concretas dos riscos à saúde e segurança, não daria ensejo ao dever de notificar a autoridade; mas, por outro lado, a notificação a respeito de um produto perigoso não deve ser adiada sob o argumento de que testes adicionais estariam em curso, para se aferir a nocividade potencial.
De tudo quando foi dito, o interessante é notar que, em harmonia com a terminologia adotada pelo CDC, as Cortes brasileiras têm cada vez mais rejeitado a adoção de um prazo único para toda e qualquer situação concreta em que seja necessário realizar o recall, até mesmo porque, muitas vezes o fornecedor demanda tempo razoável para a realização de estudos técnicos acerca do risco superveniente apresentado pelo produto ou serviço.
Péricles d´Avila Mendes Neto é advogado do Trench, Rossi e Watanabe Advogados.

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