Autora: Vera Marta Junqueira
Há alguns dias um articulista do jornal O Estado de São Paulo citou, sem nomear, um sociólogo que teria dito: “Nós somos imigrantes no mundo virtual. Nossos filhos são nativos”. Se esta afirmação é mais que verdadeira com relação aos avanços da tecnologia, também se aplica admiravelmente bem ao maravilhoso mundo do consumismo. Na realidade, temos que ser sinceros: comprar é bom e todos nós gostamos, uns mais, outros menos, mas somos todos atores neste show de ofertas fantásticas que nos demonstra que os produtos ou serviços adquiridos há pouco tempo, hoje são irremediavelmente obsoletos.
No início da década de 90, trabalhando no Procon de São Paulo, já me preocupava o excesso de brinquedos que eram lançados por ano. Lembro-me que naquela época, somente uma empresa (isto antes da grande abertura para a importação neste setor) fabricava 360 novos brinquedos por ano. Era o fim das bonecas que tinham nome, aniversário, confidentes caladas de várias gerações que, brincando, aprenderam a interagir socialmente; o fim das coleções de carrinhos, das batalhas travadas com soldadinhos de chumbo ou playmobiles, em que os heróis eram bem menos “flexíveis” que os atuais.
Era inevitável que os relacionamentos interpessoais fossem afetados por tempos de gratificação tão pequenos, com objetos de desejo que logo não mais interessavam. Começava a era do descartável, da obsolescência programada, não só porque a tecnologia avançava rapidamente satisfazendo nossas necessidades de maneira cada vez mais eficiente e eficaz, mas, principalmente, porque começava também o tempo da velocidade: das informações, dos relacionamentos, das aquisições, das fortunas e das celebridades instantâneas, tempo em que passaram a ser nomeados novos objetos de desejo a cada instante.
Toda uma geração cresceu tendo como referência a grande máxima da sociedade de consumo – eu sou aquilo que consumo. Porém, como reza a psicanálise: o desejo nunca se realiza, só se desloca.
Consumir significa, então, ter acesso ao objeto de desejo do momento, eleito pelo melhor marketing como sendo aquele que vai lhe definir como a pessoa que é ou deseja ser, membro (real ou por imitação de hábitos de consumo) de determinado grupo social. A obsolescência já não é mais programada em função da durabilidade do produto quanto a sua possibilidade de utilização, mas com relação ao tempo que ele se manterá como objeto de desejo. Como se diz popularmente: “a fila anda!”.
E agora, caso, em razão da crise financeira que estamos atravessando, não possamos continuar a consumir tanto? Como esta geração vai saber quem é, a que grupo social pertence, como se gratificar quando vier o inevitável pensamento “vou comprar porque eu mereço”? Será que todos deixarão de ser merecedores destas pequenas (às vezes nem tanto) compensações?
Se existem divergências com relação à extensão da crise, seu poder de contagiar as economias de diferentes países, também de maneiras diferentes ou sua duração, parece ser unânime o fato de que ela existe e não é pequena. Todos os economistas temem pela recessão, que, na prática, por várias razões, significa para o consumidor leigo a diminuição no seu poder de consumo de produtos e serviços. Difícil explicar para um adolescente, por exemplo, que ele não vai poder ter o novo par de tênis que foi lançado porque estourou a “bolha imobiliária nos EUA”.
É interessante ponderar que o que não se deseja do ponto de vista econômico, pode causar menos dor ao consumidor: se a crise vier a ser abrangente e severa, o sofrimento poderá ser compartilhado, novos códigos logo serão proclamados, sem serem falados ou escritos e a situação, por ser grave, terá que ser enfrentada pela coletividade, por todo o grupo.
No entanto, como é mais provável que aconteça, a crise deverá atingir de maneira diferente os diversos setores da economia. Assim, ela afetará também de maneira diferente membros de um mesmo grupo social, de uma mesma classe social. Neste caso, o sofrimento dos mais atingidos tende a ser maior e enfrentar a situação com racionalidade pode a demorar mais, resultando em maiores prejuízos. Estabelecer um novo orçamento, cortando despesas, mudando hábitos de consumo já arraigados, tende a ter como conseqüência a impossibilidade de manter o convívio com os amigos, gerando certo constrangimento. Enfrentar a realidade seja ela qual for, com objetividade e, porque não, com esperança, é essencial para não se cair em terreno movediço.
Vale ressaltar que depressão econômica não tem nenhuma relação direta com depressão psíquica; sentir medo, insegurança são reações absolutamente normais diante de determinadas situações. O que se deve tentar é evitar que estes sentimentos nos imobilizem, impedindo-nos de tomar as decisões necessárias no momento certo.
Ao longo da história crises acontecem e atingem pessoas que não tiveram nenhuma relação com suas origens, causando-lhes prejuízos financeiros, pessoais e familiares. Consumir menos ou aprender a postergar a realização de seus desejos de consumo pode ser dolorido, porém um grande aprendizado, especialmente para os “nativos” de uma sociedade consumista.
Assim, não nos enganemos, se isto acontecer, todos nós, de alguma forma, teremos que mudar conceitos e redefinir valores, o que, sem dúvida, poderá ter um lado muito positivo.
Vera Marta Junqueira é psicóloga, especialista em relações de consumo.