A maldição dos paradigmas


José Teofilo Neto

Outro dia, mexendo num baú com relíquias da família, encontrei um trabalho manual feito por minha avó cujo destino era enfeitar a entrada da casa, fazendo às vezes de um tapetinho. Estimo que tenha uns 80 anos. É lindo, muito colorido, feito de tiras de pano, todas cheias de nós, porém muito bem acabado com um tecido com finos bordados.

Coisas assim mexem com a gente e de repente fiz uma volta a um passado já distante. Coisa de 25 anos, mais ou menos. E o que vi?

Vi um sujeito solitário nos auditórios da antiga Cia. Telefônica da Borda do Campo, apregoando a empresários as oportunidades de se fazer negócios por telefone. Nesta época, chamávamos isto de “aplicações do telefone”, enquanto nos EUA dava-se o nome de Phone Power (o poder do telefone). Acreditem, não fazíamos feio diante do “big brother”. Logo depois esta poderosa ferramenta mostrou-se abrangente e adotou o nome de telemarketing.

Depois fui para a Telesp e continuei a catequese. Depois, para vários outros auditórios pelo Brasil, com novos parceiros que começavam a se agrupar na recém fundada ABT (Associação Brasileira de Telemarketing).

Saindo dos auditórios e vivenciando o dia a dia das empresas inovadoras que acreditavam neste negócio, começava o show de horrores, que denomino A Desgraça dos Paradigmas. E explico.

Por ser uma atividade nova, não era bem entendida e à vezes nem bem aceita tanto dentro das empresas como fora delas. Os questionamentos vinham de todas as fontes: juízes e advogados trabalhistas, legisladores, sindicalistas, vendedores externos, gente do próprio RH (Recursos Humanos), pessoal da telefonia. Vivíamos então sob intenso bombardeio, tendo que responder a verdadeiros inquéritos e aceitar certa decisões:

– faz uso algum equipamento de telefonia, ou fones de ouvido? Então é telefonista e aplica-se a legislação pertinente. Disto decorre o turno de 6 horas.

– utiliza terminal de computador? Então é digitador e aplica-se a legislação pertinente. Disto decorrem muitas normas, inclusive de saúde sobre esforço repetitivo.. Está com dor no braço? Digita? Então é LER! (*)

– faz uso freqüente da a voz? Ficou rouco, é LER

– está com dor nas costas? Tome quinze dias, pois é LER

– trabalha em ambiente fechado? Barulhento? Tome insalubridade

– está incomodando os clientes, tome listas “do not call”

Mesmo assim fomos abrindo espaços, construindo esta pujante indústria, apesar dos retalhos e sobras de tecidos desgastados (e que a contragosto ainda nos submetemos) que aparentavam proteção ao trabalhador e à sociedade, mas que em verdade representavam intolerância frente esta novidade que prometia e, de fato, trazia como provou que traz economia de tempo, mais produtividade, maior atenção aos clientes; maior conforto, comodidade e conveniência aos clientes e trabalhadores para executarem suas atividades.

Na vontade de acertar, contratamos fonoaudiólogos; psicólogos, instrutores, professores de educação física, analistas de sistemas, técnicos e engenheiros de telecom e informática, ajudamos a indústria de móveis de escritório, com pelo menos 250 mil estações de trabalho desenvolvidas segundo critérios ergonômicos.

Somos ávidos por novidades que nos auxiliem e não somos burros de querermos acabar com a mão de obra a duras penas formada, causando-lhe doenças, sofrimento, pois esta mão de obra é a voz e imagem da empresa. É nosso grande capital. Não é comodity e nem poderá ser substituída por robôs.

Isto não é retórica, acreditamos nisto!

Dizer que somos santos jamais, pois há bons e maus em todos os segmentos. Cometemos e ainda cometeremos erros e até alguns exageros. Porém desconheço casos de trabalho escravo, membros decepados, perda de visão, de audição, como ainda ocorre em indústrias que representam segmentos empresariais centenários, tanto na indústria de produtos, como até na atividade agrícola.

Conclamo e acho que caberia à ABT convocar a inteligência contida neste nosso segmento para o debate de normas embasadas no bom conhecimento técnico, científico, social e previdenciário. Se não fizermos isto, uns mais espertos se aproveitarão e tentarão nos colocar mais estas culpas:

– Está com celulite ou culote avantajado porque trabalha sentada?

– O ambiente é predominantemente feminino e você está ficando, sei lá, assim meio, você me entende?

– Você usa piercing na língua e isto dificulta sua dicção, fazendo-o repetir várias vezes?

– Foi ao estádio ontem e berrou 4 horas pelo seu time e hoje acha que está rouco porque a ligação esta baixa e você tem que gritar?

– No fim de semana ajudou na construção de mais um quarto em sua casa e hoje lhe doem os braços e as pernas, porém acha que é por causa da tensão e do stress da sua atividade no callcenter?

Minha contribuição para o debate é meu testemunho das experiências que vivi:

1. O mito das seis horas de jornada – Sim existem algumas atividades muito desgastantes como a dos profissionais que trabalham em centrais de atendimento de serviços essenciais, que precisam ser estudadas à parte, inclusive dos policiais que atendem as emergências na área de segurança. Outras centrais de atendimento a clientes principalmente de produtos não carregam tamanha carga estressante, sendo que na maioria dos casos os contatos dos clientes são para elogiar, opinar, solicitar informações de uso, solicitar catálogos. Quanto pior o produto ou desonestidade da empresa quanto às promessas que faz, maior o número de clientes que reclamam irados.

Em centrais de televendas muitos argumentam que atendem ou fazem uma ligação atrás da outra. Mas vamos refletir: há a conversação e negociação onde a audição e fala são predominantes durante alguns minutos. Depois, há a formalização do pedido, onde os dados do cliente são digitados e confrontados com outras bases de dados.

Os números variam de produtos para produtos, mas posso afirmar que na média são 4 minutos de transação e depois cerca de 6 a 8 minutos de formalização. Como se vê ninguém fala ou digita o tempo todo.

Mesmo quando não há venda efetivada, são feitos alguns registros que causam uma pausa no falatório.

2. Os equipamentos – Os fones de ouvido (headsets) evoluíram drasticamente quanto ao peso, e principalmente na recepção e transmissão da voz. Hoje ninguém fica com dor nos ombros devido ao peso dos mesmos, tampouco roucos por precisar gritar ao telefone e muito menos surdo pela impossibilidade de modular o som que está chegando ao seu ouvido. Ninguém precisa tensionar o braço dobrando-o para segurar um mono fone, ou sustentar o braço sobre um móvel, o que antes causava LER. Higienicamente então nem se fala. Ninguém precisa levar rente aos lábios a haste do headset e as espumas que tocam os ouvidos podem ser individualizadas.

O discador de chamadas é um item de conforto para o operador, reduzindo ainda mais a digitação. O gravador é uma salvaguarda do operador, acabando-se acusações e perseguições infundadas. Falou, está gravado. Os softwares exclusivos para atividade, garantem conforto devido a não necessidade de navegação entre várias telas, eliminam digitações repetidas, pouco se escreve, pois há sempre a opção de se fazer um único click que resume uma frase inteira.

3. A concentração nas pessoas – A assistência de fonoaudiólogas, orientando quanto à prevenção, proteção e profilaxia da voz e aparelho fonador; a ginástica laboral, com professores especializados; algumas formas de competição e de comemorações para tornar o ambiente mais harmonioso; ações de cidadania tornando o profissional ciente de sua responsabilidade social com o meio ambiente, com o próximo carente.

4. Um plano de carreira e o primeiro emprego – Há uma expectativa de crescimento profissional muito grande. Grandes organizações já encaram o trabalho em telemarketing como essencial para crescer na organização. Sei de um banco que, excetuando profissionais cuja atividade a legislação exige registro no conselho da classe, estabeleceu como critério para promoção ter começado pelo telemarketing, pois saber tratar com clientes é a grande credencial para ter sucesso nestes tempos de brutal concorrência mundial.

5. Incentivo à instrução, com cursos universitários corporativos.

Afinal, quem faz telemarketing?

É essencial separar as coisas. Falar ao telefone não caracteriza um profissional de telemarketing, bem como usar um computador para redigir uma carta, uma petição, uma proposta não faz de ninguém um digitador, nem secretária, nem analista de sistema. É só o sinal dos tempos.

Pois é, vencemos e agora cabe fazermos as regras, as nossas regras que resultarão num lindo tapete colorido que de tão bem feito, ocupará um lugar nas paredes para ser admirado e honrado, para que ninguém pise nele, nem tampouco limpe os pés sujos.

Finalizando, já imaginou hoje ir à justiça e reivindicar trabalhar 6 horas pelo simples fato de usar o telefone, headsets, microcomputador, sentar-se numa cadeira com rodinhas e encosto ajustável? Bem, de repente achei a fórmula para os 10 milhões de empregos que andaram prometendo.

(*) agora chamam de DORT

José Teofilo Neto é diretor da Comunicação Direta – Consultoria & Treinamento. ([email protected])

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