O caráter e os nossos olhos

Autor: Edilson Menezes
Caráter se estrutura no DNA, de maneira rígida e imutável ou é possível evoluir?

E o que é o caráter senão a reunião dos valores norteados pela sociedade?
O dente de marfim que causa a matança dos belíssimos elefantes nos deixa horrorizados. Inescrupuloso é quem se dispõe a vender e tampouco tem melhor caráter quem se propõe a comprar. Até aqui temos um fato?
Há outra figura, menos emblemática e sobre a qual poucos ambientalistas falam. Para representar esta figura, convidaremos Zaki, personagem fictício.
Laos é um país asiático de 6,5 milhões de habitantes. A economia principal é geração de energia elétrica que abastece os vizinhos Tailândia, Vietnã e China. É também o país de origem do nosso protagonista e uma rota já conhecida e utilizada por traficantes do marfim que vem das savanas africanas.
Zaki vive nas colinas, na tribo que foi seu berço e de onde jamais saiu. Desconhece rede de esgoto, eletricidade e até mesmo higiene básica.Por desinformação, às margens da cultura ou mesmo por irresponsabilidade, Zaki tem oito bocas para alimentar.
Dentes de elefante colocam comida em sua mesa por no mínimo três meses.Inclusive, Zaki perdera um dos filhos recentemente porque precisou de um antibiótico que custava pouco mais de 3 dólares e não tinha dinheiro. O pai de Zaki, que também trabalhou para o tráfico até ser assassinado, costumava dizer:
– Filho, já estive na África. Lá, tem mais elefante do que água no mar. Em Laos, só rico tem chance. Aqui, precisamos do marfim para comer!
Os animais foram abatidos na África. Zaki não precisa sujar as mãos. Tudo que deve fazer para ganhar dinheiro é ir ao aeroporto e retirar a bagagem que o traficante vai lhe entregar. Em seguida, deve levá-la ao destino. Zaki não sabe, mas a mansão onde ele entrega a mala-símbolo do hediondo crime pertence a um dos maiores traficantes de marfim do planeta.
Zaki deixa a mansão com alguns milhares de kips no bolso, que pouco valem, sem saber que a carga daquela mala pesada estava avaliada em 2 milhões de dólares e 100 animais abatidos.
Longe dali, na África, a pequena Iana de 16 anos, que recebera um prêmio internacional por denunciar um esquema milionário de tráfico de marfim, teve sua casa criminalmente incendiada. Morreram todos de sua família. O homem que entregou a mala para Zaki lhe contou esta história com a naturalidade de quem comenta um placar de futebol.
Haverá um tempo em que Zaki será chamado à razão e deixará o tráfico para assumir outra frente de trabalho. Ou morrerá. Ou será preso. Enquanto isso, podemos considerar Zaki como vítima ou vilão? E o que dizer de seu caráter?
De volta ao Brasil, falando sobre realidade corporativa, é o primeiro dia de Celso. Sua grande chance. Acaba de ser contratado como gerente administrativo naquela grande empresa. Seu pai não era dado a demonstrações públicas ou privadas de afeto e como Celso raríssimas vezes recebeu um abraço paterno, cresceu pouco dado a carinho físico. Sempre teve dificuldade para arrumar namorada e até para fazer amigos. Embora tenha se tornado homem reto e honestíssimo, seu aperto de mão é inconscientemente frouxo, daqueles que sugerem “pouca credibilidade”. Celso é apresentado ao diretor e assim que deixa a sala, este outro tira o telefone do gancho, liga para o diretor de recursos humanos e dispara:
– Acabei de conhecer o novo gerente administrativo. Invente uma desculpa qualquer e dentro de alguns dias, demita. Meu pai sempre disse para nunca confiar em gente que não tem aperto de mão firme!
Enquanto isso, uma reunião em outra empresa multinacional estava acontecendo. Maria, gerente de vendas há 5 anos, era tema da reunião entre o vice-presidente comercial e o diretor de recursos humanos. A empresa abriria uma vaga para diretor (a) de vendas. O vice-presidente defendia que Maria era a pessoa ideal e após tantos argumentos refutados, o diretor de RH disse algo que encontrou eco e fez calar seu interlocutor:
– A equipe de Maria é uma das melhores, não nego! Mas não posso dar um cargo de diretora para ela. Mesmo há 5 anos conosco, ainda temos dúvidas sobre o seu perfil. Todos os funcionários que deixaram a empresa comentaram na entrevista de desligamento que Maria não olha nos olhos das pessoas enquanto conversa!
O vice-presidente pensou um bocado e disse:
– Ok, então vamos contratar alguém de fora!
Ambos desconheciam que Maria passou a infância inteira escutando sua mãe dizer, aos berros:
– Olhe pra mim quando eu estiver falando com você! Olhe pra mim!
Maria se transformou, estudou e procurou o seu espaço, mas tinha imensa dificuldade de olhar nos olhos das pessoas. Celso cresceu com dificuldade para um simples aperto de mão. Iana cresceu com vontade de mudar o mundo. Zaki escutou durante a infância inteira que em nome do alimento, tudo é válido.
Um dia, cada personagem deste artigo passará por um treinamento comportamental, lerá um livro de alto impacto ou a própria vida se encarregará de transmitir lições evolutivas por outros meios. Enquanto isso não acontece, qual deles tem caráter duvidoso?
Deixarei para você responder. Entretanto, quero entregar outra reflexão:
Eu não tenho orgulho de todas as decisões que tomei na vida, mas tenho imenso orgulho das decisões que adoto hoje. Logo, a experiência me permite dizer que os valores mudam e se assim acontece, o caráter pega carona.
Eu não tenho ideia de quantas Maria, Celso, Iana e Zaki estão por aí, aguardando o julgamento de alguém que pode ser eu, você ou o vizinho.
Eu não tenho e duvido que alguém tenha uma régua que sirva para dizer com total certeza o que é retidão de caráter, mas recuso-me a crer que caráter é tão e somente uma questão de berço, até porque muitos berços nobres já sentiram vergonha das pessoas que acalentaram e se não lhe vem em mente nenhum exemplo, ligue a televisão e procure matérias sobre políticos condenados.
Eu não tenho um segredo corporativo para que as pessoas sejam exitosas na lida com os seus pares, líderes e liderados, mas tenho propostas:
– Comece a enxergar o ser humano por trás do suposto caráter que hoje você rotula.
– Deixe para o presente e o futuro julgarem as ações praticadas pelas pessoas com quem você convive no mínimo oito horas diárias.
– Comece a vislumbrar a intenção positiva que toda ação tem. Até mesmo a desavença carrega em sua origem um desejo de mudança.
Finalmente, há um reluzente brilho na essência de cada ser humano. Às vezes, a pessoa está triste, amargurada e este brilho se torna pequeno facho de luz bruxuleante. Se você assumir uma postura sensível, poderá ajudá-la a brilhar como ela merece. Se assumir uma postura julgadora, condenará seu caráter à imutabilidade.
Pau que nasce torto nunca se endireita ou olhos que nascem julgadores nunca contemplam a amplitude da beleza humana?
A escolha, como sempre, é apenas sua!
Edilson Menezes é treinador comportamental e consultor literário. Atua nas áreas de vendas, motivação, liderança e coesão de equipes. ([email protected])

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