Um dos mais graves vícios do setor público brasileiro é a ausência de planejamento na adoção de medidas com impacto amplo e profundo na vida nacional. Muitas vezes, os problemas advindos de tais práticas equivocadas acabam afetando de modo direto as atividades produtivas. Exemplo disto é a Nota Fiscal Eletrônica, mais um imbróglio a complicar o já complexo, ineficiente e oneroso sistema tributário do País, um inferno de 60 taxas e impostos, sem precedentes no mundo civilizado, que abocanha vorazmente mais de 37% do PIB.
A reforma desse anacrônico sistema, que intimida ao invés de estimular a produção, é uma das mais fortes reivindicações da iniciativa privada. Tal tarefa, contudo, transformou-se em tabu, desafiando, teimosamente, governos e legislaturas há quase duas décadas, desde a promulgação da Constituição de 88, em cujas disposições transitórias estava prevista a revisão da Carta, incluindo os marcos regulatórios da economia, no prazo máximo de cinco anos. Pois bem, antes de atender a esse legítimo anseio dos brasileiros, eliminando um dos principais entraves ao crescimento, o governo busca introduzir, com certo caráter sub-reptício, a Nota Fiscal Eletrônica.
Num momento em que, mais do que nunca, o Brasil precisa reduzir os custos impingidos pelo Estado à produção, melhorando a competitividade e oferecendo à economia melhores condições de crescimento, colocam-se, mais uma vez, os bois do retrocesso na frente do carro da história. É óbvio que, sem profunda revisão do arcabouço tributário, abrangendo a redução de impostos, ampliação da base de contribuintes (que reduziria a sonegação e a evasão fiscal) e melhoria da eficácia da fiscalização, a Nota Fiscal Eletrônica tenderá ao insucesso.
Sintoma emblemático desse quase óbvio vaticínio é a escassez de empresas dispostas a arcar com o alto custo inerente à implantação do sistema. Tanto isto é verdade, que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, uma das unidades da Federação em que o projeto-piloto está sendo implementado, acaba de prorrogar, até 16 de novembro, o prazo para recepção de pedidos de credenciamento de empresas interessadas em participar voluntariamente da segunda fase do projeto da Nota Fiscal Eletrônica. Os credenciados teriam de, em caráter não compulsório, emitir os primeiros documentos, já no novo modelo, a partir de 2 de abril de 2007.
A Secretaria da Fazenda informa que as primeiras empresas a emitir notas fiscais eletrônicas em São Paulo foram a Wickbold e a Volkswagen. O que não se revelou, contudo, é que tais documentos referem-se apenas a transferências para filiais. Ou seja, trata-se de um processo interno, muito aquém dos objetivos dos órgãos fazendários e da Receita Federal, de implementar nova metodologia para a troca de notas fiscais entre parceiros comerciais. O mais grave é que não se divulgam com clareza os problemas inerentes aos custos e dificuldades para a implantação da Nota Fiscal Eletrônica e, tampouco, que esses ônus pesam na contabilidade das empresas. Raros são os analistas que enfocam a questão com a devida transparência e objetividade.
Assim, é fundamental que as empresas e toda a sociedade tenham plena consciência sobre alguns pontos cruciais: o projeto implicará custo de desenvolvimento e implantação tanto para o fisco quanto para os contribuintes; estes arcarão com elevadas despesas de adaptação de seus processos de trabalho (áreas de contabilidade, faturamento, cobrança e controle de estoque); o projeto é regressivo, à medida que prejudicará de modo mais acentuado as empresas economicamente mais frágeis; e as empresas estão sendo obrigadas a adaptar seus próprios sistemas, pois os órgãos fazendários não distribuíram um programa padrão.
Como se pode observar, a introdução da Nota Fiscal Eletrônica ainda é muito incipiente. Além disto, pelo fato de atropelar a Nação num momento em que a prioridade fiscal continua sendo a reforma tributária, corre o risco de repetir o problema do Emissor de Cupom Fiscal (ECF), cuja implantação vem sendo buscada desde 1998, sem que a meta fosse integralmente atingida. E esse é um programa muito menos complexo e oneroso.
Por conta desses descompassos em relação à realidade e às prioridades, o Brasil vai ficando para trás na acirrada competição do mundo globalizado. Mais um ano vai chegando ao fim e, outra vez, conforme evidenciam distintos estudos e projeções de organismos nacionais e internacionais, seremos a economia emergente, incluindo os latino-americanos, com o mais baixo índice de crescimento. Ah, sim, ganharemos, como em 2005, do Haiti…
Antônio Leopoldo Curi é presidente da Associação Brasileira da Indústria de Formulários, Documentos e Gerenciamento de Informações (Abraform).