O que estamos vendo não é apenas uma transformação tecnológica, mas um novo modelo de cuidado e quem dominar essa infraestrutura dominará o futuro da saúde
Autor: Marcon Censoni de Ávila e Lima
Nas últimas semanas, uma série de manchetes revelou ao mundo que a saúde do futuro já não está nos laboratórios — está nos sistemas operacionais, nos algoritmos e na nanotecnologia vestível. Lentes de contato que ampliam a visão noturna, marca-passos do tamanho de um grão de arroz que se dissolvem após algumas semanas, médicos baseados em IA atuando em hospitais chineses e a Apple assumindo lugar de destaque no ecossistema hospitalar.
Por trás dessas notícias está a consolidação de uma nova geopolítica da saúde: Estados Unidos, China, Emirados Árabes e Arábia Saudita disputam, agora, não apenas petróleo, semicondutores e poder militar — mas a soberania sobre os dados biomédicos, os modelos de diagnóstico e as plataformas digitais que serão o novo pilar dos sistemas de saúde.
O Brasil, país continental com mais de 210 milhões de habitantes, não pode assistir a esse movimento como mero espectador. A hora de agir é agora.
A revolução silenciosa dos sensores
A integração entre bioengenharia e inteligência artificial deu origem a uma nova geração de dispositivos médicos — discretos, biodegradáveis, e, principalmente, inteligentes. O novo marca-passo dissolvível, com o tamanho de um grão de arroz, não exige cirurgia nem fios. Implantado por cateter ou de forma subcutânea, transmite sinais por radiofrequência e é reabsorvido após cumprir sua função.
As lentes de contato com capacidade de visão noturna já não pertencem à ficção científica. Desenvolvidas com materiais biofotônicos e sensores de infravermelho próximos, elas oferecem apoio a profissionais de segurança, deficientes visuais e pacientes com degeneração retiniana.
Médicos de silício: a China lança o primeiro hospital com IA assistencial
Em maio de 2025, a China inaugurou a primeira unidade hospitalar gerida por agentes médicos baseados em inteligência artificial. Com acesso a prontuários, algoritmos de diagnóstico diferencial e modelos de linguagem natural como o DeepSeek, esses sistemas realizam triagem, exames virtuais e prescrições em tempo real. Um médico humano supervisiona o processo, mas apenas nos casos em que a IA sinaliza incertezas clínicas.
Essa nova arquitetura de atendimento promete aumentar a cobertura em áreas remotas, desafogar sistemas saturados e permitir que médicos humanos concentrem-se em casos de alta complexidade — tudo isso com custo inferior ao dos modelos tradicionais.
Apple, Amazon, Microsoft e Google: a corrida pela saúde hospitalar
A saúde digital virou a nova fronteira de investimento das gigantes da tecnologia. A Apple iniciou parcerias com redes hospitalares globais para integrar seus dispositivos — iPhones, iPads e Apple Watch — diretamente aos prontuários eletrônicos. Já a Microsoft aposta na interoperabilidade com a Nuance e sistemas de automação assistencial. A Amazon investe no modelo de atenção primária digital com a One Medical, enquanto o Google e a Isomorphic Labs avançam em IA aplicada à descoberta de fármacos e triagem oncológica precoce.
Arábia Saudita e EAU: do petróleo à biotecnologia como ativo estratégico
A Arábia Saudita anunciou oficialmente a intenção de se transformar no “Reino da IA”. Para isso, investe pesado na criação do maior campus de inteligência artificial do Oriente Médio e em biobancos com milhões de genomas. Os Emirados Árabes seguem o mesmo caminho, posicionando-se como destino preferencial para healthtechs globais e startups de medicina personalizada.
Trata-se de uma transição histórica: a hegemonia energética do século XX está sendo convertida em hegemonia algorítmica no século XXI.
E o Brasil? Hora de sair da retaguarda
Embora o Brasil tenha um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, o SUS, e um ecossistema privado sofisticado, ainda engatinha na consolidação de uma estratégia nacional de saúde digital de alto impacto. O país conta com iniciativas importantes — como o Conecte SUS, programas de telessaúde e esforços do Ministério da Saúde e do BNDES em digitalização de UBSs —, mas falta uma visão integrada, de longo prazo.
O país precisa criar uma Autoridade Nacional de Saúde Digital, fortalecer as agências reguladoras (Anvisa, ANS e CFM) com competências digitais, fomentar sandbox regulatórios para testes clínicos com IA e wearables, e ampliar parcerias com universidades, startups e hospitais de referência para integrar prontuários, algoritmos e interoperabilidade.
Além disso, a telemedicina precisa deixar de ser exceção emergencial e se tornar infraestrutura essencial da Atenção Primária. Com médicos desassistindo regiões remotas, a resposta não pode depender apenas da abertura de concursos — mas da estruturação de hubs assistenciais híbridos com robótica, IA e dispositivos móveis.
O Brasil precisa pensar grande
O que estamos vendo não é apenas uma transformação tecnológica, mas um novo modelo de cuidado — menos hospitalocêntrico, mais preditivo, participativo, digital e humanizado. Quem dominar essa infraestrutura dominará o futuro da saúde.
Se o Brasil não quiser depender eternamente de tecnologias estrangeiras, será necessário agir com ambição, foco e estratégia. A janela de oportunidade está aberta — mas não ficará assim por muito tempo.
Marcon Censoni de Ávila e Lima é médico e atua em projetos de inovação clínica e hospitalar, com foco em IA e gadgets na saúde.