O desafio não está apenas em desenvolver sistemas mais inteligentes, mas em garantir que eles sirvam a propósitos claros
Autor: Kefreen Batista
Desde os autômatos mecânicos do século XVIII até os algoritmos generativos do século XXI, a humanidade persegue um fascínio paradoxal: criar entidades que imitem a vida, mas que não a substitua. Um exemplo recente são os bebês reborns, que nas últimas semanas ganharam holofotes no Brasil em inúmeras reportagens e viralizações nas redes sociais, com vídeos de influencers exibindo suas coleções de bebês hiper-realistas — alguns com preços equivalentes a um salário mínimo — e tutoriais ensinando a “cuidar” deles como se fossem reais.
A viralização dessas bonecas, muitas vezes associadas a relatos de alívio para a solidão ou traumas, reflete um fenômeno global, mas com nuances locais: aqui, a discussão se mistura a memes, críticas à estética “assustadora” e debates sobre consumo e saúde mental. Enquanto alguns defendem seu papel como objeto de conforto, outros questionam até onde a tecnologia pode moldar — ou confundir — nossas necessidades afetivas.
O que chama atenção é como essa tendência dialoga com avanços paralelos em humanos sintéticos – avatares digitais com emoções e comportamentos programáveis. Enquanto os primeiros ocupam um espaço físico, os segundos habitam telas e servidores, desafiando a noção de presença. Ambos desafiam a fronteira entre o orgânico e o artificial, enquanto questionam até onde a tecnologia pode replicar — ou redefinir — o que entendemos como “humano”.
Se os bebês reborns materializam o desejo de um cuidado físico e palpável, a inteligência artificial avança na criação de entidades imateriais, porém interativas. Juntos, eles apontam para um futuro híbrido, no qual o afeto não será binário (real ou artificial), mas uma teia de conexões que mescla silicone, algoritmos e biologia.
Num país onde a tecnologia convive com contradições sociais, essa fronteira é ainda mais porosa: enquanto redes vendem reborns como “filhos perfeitos”, startups testam chatbots terapêuticos para lidar com a epidemia de solidão urbana. O paralelo não é mera coincidência: ambos os fenômenos revelam que, na busca por preencher vazios ou suprir outras lacunas, a humanidade está redefinindo não só o que é “vivo”, mas também o que é suficiente.
O avanço dessas tecnologias não é isolado. Projeções indicam que o mercado de avatares humanos digitais movimentará US$ 67 bilhões até 2032, impulsionado por setores como saúde e varejo. Empresas já testam assistentes sintéticos para atendimento ao cliente, combinando processamento de linguagem natural com rostos realistas gerados por IA.
Essas ferramentas prometem eficiência, mas também suscitam dúvidas: um algoritmo que reconhece emoções pode substituir um profissional humano? Ou seria ele um complemento, como defende parte do mercado, que enxerga na IA uma forma de liberar pessoas para tarefas mais estratégicas? A resposta parece residir no conceito de hibridização. Um futuro onde humanos e máquinas não competem, mas coexistem — como na medicina, cujos diagnósticos precisos gerados por IA se aliam à empatia de um médico, ou na educação, que já faz uso de tutores sintéticos que personalizam o aprendizado, enquanto professores focam no desenvolvimento crítico.
Esse cenário, porém, exige uma reavaliação constante dos limites. Se um reborn pode confortar alguém em luto, um humano sintético poderá, no futuro, oferecer aconselhamento psicológico baseado em dados biométricos. Até que ponto essas interações preservam — ou esvaziam — a autenticidade das relações?
Curiosamente, movimentos como o “detox digital” — exemplificado pelo presidente chileno Gabriel Boric, que adotou um dumbphone — surgem como contrapontos a essa tendência. Seu gesto simboliza uma busca pela desconexão, mas também revela uma tensão: enquanto alguns abraçam a tecnologia como extensão da humanidade, outros temem sua capacidade de fragmentar a essência do que é vivo. Não por acaso, iniciativas como o Be Kind, da Globant, que investe em usos éticos da IA, reforçam a necessidade de equilíbrio: a tecnologia deve amplificar, não substituir, a agência humana.
O desafio, portanto, não está apenas em desenvolver sistemas mais inteligentes, mas em garantir que eles sirvam a propósitos claros. Humanos sintéticos, por exemplo, já são usados para treinar profissionais de saúde em simulações realistas, reduzindo erros médicos. Da mesma forma, reborns são adotados em terapias para idosos ou pessoas com demência, estimulando memórias afetivas. Em ambos os casos, a tecnologia opera como ponte, não como fim — um detalhe crucial para evitar a armadilha da substituição.
Para navegar esse paradoxo, transparência é essencial. Assim como os reborns são reconhecidos como bonecos, humanos sintéticos precisam ser identificáveis como entidades digitais. A regulamentação terá papel central, mas a ética individual também: será preciso discernir quando delegar tarefas a máquinas e quando preservar o toque humano. Empresas, como sugere o relatório da Globant, devem encarar a IA não como concorrente, mas como ferramenta de potencialização — um recurso que otimiza processos, mas deixa intocáveis valores como criatividade, intuição e empatia orgânica.
O futuro, portanto, não será uma escolha binária entre humano e sintético, mas uma colagem de ambos. Cabe a nós decidir como costurar essas camadas sem perder o fio que nos conecta: a consciência de que, mesmo em um mundo híbrido, a essência humana reside não na perfeição da imitação, mas na imperfeição da reciprocidade.
Kefreen Batista é VP de tecnologia da Globant.