Valor, para esse público, é aquilo que une significado, execução impecável e experiência que permanece
Autora: Tamara Lorenzoni
O setor do luxo entra em 2026 em um momento de mudança profunda. Depois de anos impulsionado por reajustes de preço e expansão acelerada, o mercado vive o que o relatório State of Fashion 2026, da BoF e McKinsey, chama de Luxury Recalibrated: um processo de depuração em que o crescimento deixa de depender de volume e passa a ser sustentado por precisão, coerência e experiência. O termo não é mera retórica. Ele estabelece uma inflexão real no entendimento do que sustenta o valor de uma marca, em um cenário global em que consumidores, mercados e sensibilidades culturais mudam em ritmo acelerado.
Essa virada não representa apenas uma resposta conjuntural à desaceleração econômica, às barreiras geopolíticas ou às pressões regulatórias. Ela marca um deslocamento mais profundo, um movimento em direção a um luxo que deixa de operar na lógica da abundância e retorna ao território da intenção. As marcas que dominaram a última década foram as que expandiram portfólio, abriram mercados, ampliaram presença e capturaram públicos que antes não eram considerados consumidores tradicionais de luxo. A estratégia funcionou até deixar de funcionar. Hoje, a equação se reorganiza em torno de algo que não é novo, mas ganha novo significado: profundidade.
Para entender esse movimento, é preciso observar não apenas as marcas, mas sobretudo o consumidor. Em todos os mercados analisados — da China aos Estados Unidos, da Europa ao Oriente Médio — há uma mudança inequívoca na forma como o cliente de alta renda constrói seu conceito de valor. E essa mudança não é estética: é comportamental. O consumidor de alta renda em 2026 não se define apenas por poder aquisitivo; ele se define por repertório, sensibilidade, consciência simbólica e uma demanda mais sofisticada por significado.
Nos últimos cinco anos, o setor viveu a consolidação da “economia da experiência” e deu seus primeiros passos em direção ao que eu chamo de “economia da intenção”, na qual valor não é aquilo que se acumula, mas aquilo que se escolhe experimentar. O que observamos agora é a consolidação de um novo pacto entre consumidores e marcas: a busca por coerência. Coerência entre discurso e prática, entre estética e operação, entre promessa e entrega. E, principalmente, coerência entre o que a marca é e o que ela solicita em troca — seja atenção, tempo ou recursos financeiros.
Os dados mais recentes mostram que confiança torna-se o driver número um para a escolha de uma marca. Segundo a McKinsey, produtos que comunicam qualidade real, origem clara e controle produtivo despertam níveis mais altos de lealdade e recomendação. Em um ambiente saturado por mensagens e ofertas, o consumidor de luxo migra para marcas que oferecem substância, não ruído. E essa confiança não se constrói apenas com storytelling; ela se constrói com rastreabilidade, verticalização da cadeia e consistência operacional. O consumidor observa não só o produto final, mas o caminho que leva até ele.
Esse movimento de retorno à confiança como núcleo do valor também pode ser interpretado como resposta à era da saturação. Marcas que cresceram por campanhas espetaculares, parcerias de alto alcance e uma estética visual que se tornou quase homogênea agora descobrem que esse modelo não sustenta lealdade no longo prazo. A nova narrativa exige um outro tipo de autoridade: uma autoridade silenciosa, construída pela profundidade do ofício. O prestígio, no século XXI, deixa de ser performático e volta a ser estrutural.
Outro vetor decisivo é a experiência. O relatório aponta que “melhor serviço e ambiente” aparece entre os motivadores centrais de compra em quase todos os mercados. O luxo de 2026 não se consolida na superfície do produto, mas na forma como ele é apresentado, narrado, entregue e sustentado ao longo do relacionamento. A experiência deixa de ser um acessório e se torna infraestrutura. O cliente contemporâneo deseja um serviço de alto toque, ambientes sensoriais e atendimento contextual capaz de reconhecer preferências individuais, histórico e timing.
Aqui, a tecnologia desempenha papel fundamental, mas não como substituta da experiência humana. Ela atua como inteligência estratégica para que o toque humano seja mais preciso. O clienteling baseado em dados unificados não se trata de oferecer mais informações ao vendedor; trata-se de oferecer a informação certa no momento certo. Em outras palavras, trata-se de transformar cada interação em um gesto de reconhecimento.
Personalização, neste contexto, deixa de ser mimo e se transforma em critério de valor. Não basta oferecer opções; é preciso oferecer intenção. Personalização contextual significa saber não apenas o que o cliente quer, mas por que ele quer. Significa compreender o ritmo, o momento e as camadas simbólicas que orientam sua decisão. O que se observa globalmente é que marcas que dominam essa habilidade não apenas vendem melhor: elas fidelizam de forma mais profunda.
As gerações mais jovens, especialmente Millennials e Gen Z de alta renda, reforçam essa inflexão. Para elas, exclusividade não é distância, mas significado. Distinção é construída por narrativa, estética coerente, capital cultural e sensibilidade de marca, e não por barreiras artificiais de acesso. O luxo para essa geração não é ornamental; é identitário. É menos sobre “ter” e mais sobre “pertencer” a um universo simbólico que reflita sua visão de mundo.
Essa mudança é especialmente evidente em mercados como a China, que lidera o movimento de criatividade e diferenciação estética. Ali, luxo é expressão, e a inovação visual, estética e narrativa é central para a construção de valor. Nos EUA e Reino Unido, observa-se outra equação: durabilidade, qualidade e excelência de serviço se tornam os elementos determinantes. A Europa, por sua vez, mantém seu foco histórico em ambiente e pós-venda impecável, priorizando o ritmo lento, a precisão e o contato humano qualificado. Estes padrões evidenciam que não existe “luxo global”, mas sim uma constelação de códigos culturais de desejo.
E onde podemos esperar que o Brasil entre nessa equação? O consumidor brasileiro de alta renda opera por um eixo próprio: refinamento afetivo. Ele busca acolhimento, atmosfera, narrativa territorial e experiências que combinam excelência com calor humano. Essa sensibilidade brasileira cria uma equação única no mercado global: um desejo por ritual, por estética e por refinamento, mas sempre permeado por uma dimensão afetiva, uma proximidade que não compromete a sofisticação, mas a intensifica.
A preferência crescente por códigos discretos, convive com uma forte valorização de atendimento personalizado. O cliente brasileiro quer excelência técnica, mas quer também presença humana capaz de interpretar nuances emocionais. Ele reage bem à sobriedade estética, mas exige sensibilidade na entrega. Para esse consumidor, exclusividade não se afirma por distanciamento: afirma-se por reconhecimento. O cliente quer sentir-se visto, não apenas atendido.
Essa característica tem implicações profundas para o mercado brasileiro. Enquanto consumidores de outros países respondem a experiências mais distantes, arquitetônicas e silenciosas, o consumidor brasileiro responde a experiências que unem refinamento e afeto. Não se trata de informalidade, mas de sensibilidade. O Brasil não rejeita o luxo clássico; ele o traduz para sua própria linguagem emocional. Isso significa que a experiência, no Brasil, precisa ser simultaneamente impecável e calorosa, técnica e humana, estruturada e fluida.
Diante desse cenário, algumas direções tornam-se inevitáveis para as marcas que desejam liderar o próximo ciclo. É necessário integrar produto, cadeia produtiva, narrativa, experiência, dados e direção criativa em um sistema único, coerente e sustentável. A fragmentação, tão presente no luxo da última década, onde cada departamento operava sua própria narrativa, deixa de ser uma opção. O consumidor de 2026 percebe desalinhamentos com uma clareza impressionante. Inconsistências que antes passavam despercebidas agora são interpretadas como sinais de desatenção e, portanto, de menor valor.
Essa integração não é simples. Ela exige repensar processos, reavaliar prioridades e abandonar iniciativas que antes pareciam estratégicas, mas hoje se mostram meramente táticas. Exige, sobretudo, que as marcas deixem de operar no curto prazo e retornem a uma visão de longo prazo que sempre foi a base do luxo clássico. O desafio contemporâneo não é inovar; é inovar com coerência.
Investir em ambientes que ampliem o valor percebido é outra frente essencial. O varejo físico deixa de ser um lugar de compra e se torna um lugar de relação. A loja, no luxo, transforma-se em um espaço de experiência sensorial, de construção de memória, de expressão de identidade. Nela, arquitetura, luz, ritmo, temperatura, fragrância e narrativa se tornam elementos estratégicos de retenção. O objetivo não é apenas vender: é criar um lugar ao qual o cliente retorna porque ali sente que pertence.
Tratar personalização como inteligência estratégica, não como gesto isolado, é igualmente fundamental. A personalização verdadeira não é sobre multiplicidade de opções, mas sobre singularidade de percepção. Ela envolve interpretação, contexto e narrativa. Exige que a marca conheça o cliente de forma contextual, não estatística. E exige que cada gesto de atendimento carregue sentido.
E, sobretudo, reconstruir confiança com clareza e consistência. Em uma era marcada por excesso, a confiança se torna o maior luxo de todos. E ela não se compra; se conquista. Se conquista pela qualidade do produto, pela integridade da cadeia produtiva, pela composição estética da narrativa, pela precisão da experiência e pela capacidade da marca de manter coerência mesmo em ambientes voláteis.
O luxo de 2026 separa quem cresce por convenção de quem cresce por intenção. O consumidor de hoje não busca apenas adquirir; ele busca se conectar. Ele busca marcas que ofereçam densidade simbólica, inteligência sensorial e rigor estético. Valor, para esse público, é aquilo que une significado, execução impecável e experiência que permanece. O luxo será definido por quem falar com mais profundidade. As marcas que entenderem essa lógica não apenas sobreviverão ao recalibrar do setor, elas o liderarão.
Tamara Lorenzoni é mestre em gestão de marcas de luxo pela Domus Academy Milano.





















