Colossais e, não raro, discrepantes. Assim são os números que traduzem os valores negociados, mesmo na Internet de um país de economia em crescimento. Até os cálculos mais conservadores se mostram espantosos. No Brasil, uma das maiores autoridades no assunto, a Camara-e.net (Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico), diz, no B2BOL®, índice que mede o movimento das transações entre empresas e nos mercados eletrônicos, que, em 2004, as operações em regime B2B movimentaram a bagatela de R$ 195,2 bilhões – valor 30% maior do que o movimentado no ano anterior. Desse montante, o segmento batizado de B2B Companies, representado pelos portais privativos das empresas, respondeu por R$ 148,9 bilhões, enquanto o B2B realizado nos e-marketplaces independentes registra transações no valor de R$ 46,3 bilhões.
Quanto ao varejo on-line, experimentou crescimento de 43,2% – 13,2 pontos porcentuais a mais do que o setor B2B. Mas a receita estancou nos R$ 7,5 bilhões, graças, ainda assim, a 4,3 milhões brasileiros. Somente a indústria automobilística e seus parceiros, que, juntos, fizeram a lição de casa direitinho, no que diz respeito a marketing de produto e logística de distribuição, comemora um aumento de receita de quase 32%, em comparação com os resultados contabilizados em 2003. O valor total das vendas, somando R$ 4,27 bilhões, cresceu 57% em relação ao ano anterior.
Ledo engano – A comparação dos desempenhos dos mercados on-line B2B e B2C desmente, sem dó nem piedade, os analistas mais bem informados. Em agosto de 2000, quando a Internet comercial entrou no ar, eram eles que diziam que a rede seria o ambiente das transações de varejo, sem espaço para o atacado. Ledo engano. O mercado B2B é, hoje, seis vezes maior do que o B2C.
Os consultores de plantão também apostavam que o valor unitário dos produtos e serviços seria pequeno, o que, segundo eles, parecia coerente com o tipo de mercadoria exposto nas prateleiras virtuais: pacotes de viagem, CDs, livros e eletroeletrônicos. Nada além disso. Ledo engano. A prática mostrou que, no varejo on-line, vale tudo – do mapa astral aos cruzeiros marítimos, com parada obrigatória nos carros e até nos iates.
De certo modo, esses números apontam para uma realidade: a enorme insegurança da rede. As notícias de que, no ambiente web, as fraudes têm provocado perdas enormes – uma sangria de R$ 506,8 bilhões, em escala mundial, no ano passado – intimida boa parte dos internautas, quando se trata de comprar nas lojas virtuais.
Outra pegadinha foi a previsão de que a Internet, instituindo o e-mail – atualmente, cerca de 35 milhões expedidos por mês – revogaria a comunicação por telefone e poria abaixo montanhas e montanhas de papel. Ledo engano. Dia a dia, elas crescem, por uma razão simples e insana: agora, as pessoas imprimem os e-mails.
O telefone continua sendo o canal preferido, pelo menos, de 80% das pessoas que, via centrais de atendimento a clientes, se dirigem às empresas de bens e serviços para obter informações, protestar ou, raramente, elogiar. Isso é o que asseguram estatísticas divulgadas pelas operadoras de call center, confirmadas pela Associação Brasileira de Telemarketing.
O contato pessoal, ao contrário do que disseram os antropólogos e sociólogos que olham a tecnologia com desconfiança, não trouxe a síndrome do autismo eletrônico. Os bares continuam repletos de amigos, reunidos em torno da santa cervejinha de sexta-feira.
Questão social – Mas a surra que o mercado B2B aplica no varejo on-line, acima de tudo, revela uma realidade que envergonha e preocupa, tendo em vista o projeto de construção da sociedade do conhecimento: a pobreza do País. Dez anos depois de a Internet chegar, de uma população de 170 milhões de pessoas, só conseguimos fazer a inclusão digital de 20,3 milhões, com acesso à rede. Na terra dos “sem-PC”, as outras 150,3 milhões, condenadas à exclusão digital (sinônimo perfeito de exclusão social), aguardam o prometido computador popular financiado. Ou a criação de terminais públicos – outra promessa que não se cumpriu, nestes dez anos.
A marginalização de 90% dos brasileiros preocupa o diretor-executivo da Câmara-e.net. “Na Sociedade da Informação, do Conhecimento, a Internet é o principal veículo de comunicação e interação, pessoal e profissional”, lembra Cid Torquato, a quem igualmente causa inquietação a questão da ética. “Isso é coisa da maior importância, mas que não vem recebendo a devida atenção por parte das lideranças e nem da sociedade em geral”, repreende o diretor- executivo da Câmara-e.net.
Com ele concorda o consultor Aurélio Ebenau, presidente da AçãoNet, empresa que administra 120 portais de conteúdo, que informam sobre os diferentes segmento de mercado. “Algumas coisas estão se modernizando de forma altamente veloz, e com tamanha força, que corremos o risco de ver aumentarem as diferenças sociais e intelectuais que separam os seres humanos”, ele adverte, embora com a ressalva de que essas mudanças são necessárias e intrínsecas: a vocação humana é a evolução, a criação, o desenvolvimento.
Entre as muitas conquistas que a Internet nos propiciou, Aurélio aponta a agilidade, velocidade, eficiência e redução de custos. “Mas o fenômeno mais visível (e irreversível) é a maneira como pessoas e empresas mudaram a maneira de se comunicar e de fazer negócios”, avalia o consultor. Do ponto de vista cultural, o presidente da AçãoNet chama a atenção para o surgimento de novas linguagens, cifradas e marcadas pelo uso intenso das gírias, cunhadas pelos adolescentes.
De quem foi a idéia?
Ironicamente, a Internet que transgride e subverte, incontrolável, nasceu, em 1969, por iniciativa de um grupo de pessoas que, por formação, só pensam em segurança: os militares ligados à Advanced Research Projects Agency, a todo-poderosa Arpa, que se reporta ao Departamento de Defesa Estratégica dos Estados Unidos.
Na época, batizada de Arpanet, era uma arma de guerra, a serviço, pura e simplesmente, da comunicação entre unidades estratégicas do governo norte-americano. Mas logo se estendeu aos meios científicos, como ferramenta de pesquisa. O primeiro e-mail, fora do ambiente militar, foi disparado pelo cientista Ray Tomlinson, em 1971, antes de um colega dele, Vinton Cerf, utilizar pela primeira vez, referindo-se à rede mundial, a palavra Internet. O pesquisador empregou o termo ao se referir ao TCP (Transmission Control Protocol), padrão de transmissão hoje adotado pela web.
O maior impulso na direção da Internet tal e qual hoje conhecemos e usamos foi, todavia, a criação, em 1989, da World Wide Web (www), que, abriu caminho para a Internet comercial. A navegação, por sua vez, ganhou agilidade em 1993, quando surgiu o primeiro browser, o Mosaic, programa capaz de interpretar a linguagem e tornar as informações visíveis na tela do micro. O processo que se completou, tecnologicamente falando, em 1990, nos Estados Unidos, com o surgimento dos primeiros provedores de acesso – empresas que fornecem infra-estrutura para conexão dos usuários, domésticos e corporativos.
No Brasil, a Web deu os primeiros passos em 1988, guiada pela Fapesp (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo), que se integrou à rede mundial para atender à necessidade de estudantes brasileiros que, depois de terminarem o doutorado nos Estados Unidos, foram os primeiros, no País, a entender que, depois de experimentar a Internet, não há mais como viver sem ela.
Aqui, a exploração comercial da rede começou, para valer, em 25 de agosto de 1995, quando a iniciativa privada, mesmo antes de decretado o fim do monopólio das telecomunicações, teve sinal verde para abrir caminho até ela. Quem registra é alguém que estava lá e criou o primeiro provedor de acesso do País – o empresário Aleksandar Mandic.
A memória viva dos pioneiros
A avaliação dos brasileiros que estavam lá, quando a Internet comercial começou, é positiva. As restrições ficam por conta da falta de certificação digital, essencial para emprestar segurança às operações, e da exclusão da maioria
Dono da Mandic, primeira empresa provedora de acesso à Internet a operar no Brasil, Aleksandar Mandic olha para trás e conclui que valeu a pena. “De verdade, quer saber? A Internet e a profunda revolução de costumes que ela deflagou nos pegaram a todos nós de surpresa. Mas, hoje, quem se lembra de como era, dez anos atrás, sem o Internet banking, com as pesquisas limitadas às enciclopédias, enfim?”, indaga o empresário.
Na opinião dele, porém, o avanço em termos comerciais, econômicos e científicos é quase nada diante do que a rede mundial trouxe para o cidadão comum. “Não dá mais para imaginar a vida sem ela, sem o poder de comunicação que ignora fronteiras e nos coloca, em poucos segundos, em qualquer lugar do mundo”, destaca Mandic.
Uma das restrições que o empresário faz à Internet – a falta de segurança – não é, propriamente, culpa dela, ele admite, mas, sim, da falta de iniciativa da parte das autoridades e dos meios empresariais, no sentido de criar um sistema de certificação digital, para uso obrigatório pelos provedores de acesso. “Na hora em que todo mundo tiver RG digital, acabarão os casos de fraude e a prática do spam. O infrator até poderá tentar insistir nas ações, mas será apanhado”, defende.
Outra crítica diz respeito à exclusão digital. “Não se admite que, quando nos preparamos para erguer a sociedade do conhecimento, tantas pessoas continuem sem computador e sem acesso à Internet”, protesta Mandic. No curto prazo, a única forma de resolver o problema e remover a desigualdade, segundo ele, é o governo, em parceria com os Correios, que chegam a todos os cantos do País, criar uma caixa postal digital para cada um dos excluídos. “Isso, sim, dará à Internet nível de capilaridade o bastante para trazer a maioria dos brasileiros para a rede, para a vida moderna”, sugere Mandic.
Livro digital – A escritora Roberta Rizzo, fundadora, em 1999, do Laboratório de Estudos do Ciberespaço, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e primeira pessoa no Brasil a publicar livro em formato digital, confessa que tem verdadeira paixão pelo mundo virtual. Uma paixão que somente se compara à que alimenta pela Educação Física, área em que se formou como professora.
Roberta conta que, muito antes de o computador se tornar popular, no começo dos anos 80, em casa, já pilotava um PC. Mas a frustração de escrever sem poder disseminar as idéias, mundo afora, só terminou quando a Internet comercial surgiu. Disposta a mergulhar nesse universo, ela buscou, em São Paulo, grupos de pesquisas. Sem encontrálos, sozinha, partiu para a investigação. O resultado foi o enorme acervo de informações organizado no livro Sedução na Internet, publicado pela Editora Revan.
Um tsunami – O trabalho, mais do que retratar, projeta no futuro o ambiente dos chats e traça o perfil dos freqüentadores das salas de bate-papo. Algo, até certo ponto, autobiográfico: Roberta relata a história de duas grandes paixões que nasceram ali, na Internet. “Não acho que um avanço tecnológico seja mais revolucionário que outro. Mas a Internet é, sim, alguma coisa aterrorizantemente revolucionária. Um verdadeiro tsunami tecnológico. E digo aterrorizante porque a quantidade de vítimas que vão ficar pelo caminho é algo inimaginável. O indivíduo tem de ser extremamente adaptável para sobreviver a essa onda”, prevê a escritora.
Tal e qual Cid Torquato e o consultor Aurélio Ebenau, Roberta acredita que, em alguns setores, a Internet foi apenas evolucionária ou incremental. E agradece aos deuses que assim seja. “As pessoas ainda se encontram e preferem tocar nos produtos que compram, acariciá-los, sentir o cheiro e falar com eles. Claro que muita gente compra pela Internet, mas, sem dúvida, a maioria compra nos outlets, shoppings e pelos catálogos”, aprova a escritora. Embora considere que alguns sites “continuam tatibitates”, a escritora chama a atenção para a genialidade de muitos, que, na opinião dela, já encontraram e divulgam um modelo de linguagem que é típico da mídia: visual e interativa.
“A Internet é pagã, herética. E disso ela dá prova todos os dia s, nos incontáveis blogs, sites e fotologs. A Internet impede que nos transformem todos em caixas de leite longa-vida desnatado, tudo igual. Ela nos liberta. O Estado homogeneiza, une. A Internet separa mais do que une, tribaliza. E é isso que se reconhece como algo típico. A Internet é a brisa suave dos digerati de Nicolas Negroponte, da X generation, de incontáveis grupos que se reconhecem. Ela é um raro oásis no qual a liberdade de expressão e a imaginação não têm limite”, escreve a professora, para quem, entretanto, na rede, “a ética é um buraco negro: todo mundo sabe que existe, mas ninguem sabe direito como funciona”.
Confira, na próxima edição, a história da criação dos mercados B2B e B2C, com direito a uma visita às empresas que resistiram ao estouro da “bolha”.