O celular-carteira começa a tomar forma. Ou você ainda duvida?


Você tem celular, não é? Então, jogue fora sua carteira! Estamos no limiar de um tempo em que esse conteúdo, que deverá estar implícito em muitas das mensagens publicitárias daqui a algum tempo, começa a se configurar uma realidade. Bancos, operadoras de telecomunicações e fornecedores de tecnologia querem se entender para gestar a terceira onda dos serviços financeiros digitais: o mobile payment (m-payment), ou seja, a transformação dos telefones móveis em meios de pagamentos. Estão faltando apenas os ajustes necessários para que um modelo de negócio, contemplando aspectos de custos e de segurança, permita o deslanche dessa novidade. E foi justamente esse debate que reuniu, no último dia 6, em São Paulo, mais de uma centena de executivos, na Conference Cliente SA – Mobile Payment – a terceira onda da convergência digital, evento recheado de informação e polêmica.

Por sua capilaridade, funcionalidade e popularidade sempre crescentes, o telefone celular vai-se tornar, de forma inexorável, um instrumento que substituirá – gradativamente e no longo prazo – o papel-moeda e os cartões de plástico. Seja no simples pagamento de uma corrida de táxi, um refrigerante, ou mesmo uma passagem em transporte público (micro-pagamentos), até as compras de bens e utensílios, no débito ou no crédito. Uma pesquisa da norte-americana Celent prevê que, até 2008, o valor representado pelas transações de compra e venda capturadas nesse aparelho em todo o mundo seja algo em torno dos U$ 58 bilhões. Entretanto, Júlio Ramos, gerente sênior de Financial Services da Accenture, prefere uma projeção mais modesta. Abordando o tema O Modelo de Negócios para o M-Payment, ele mencionou um levantamento da Júpiter Research, segundo o qual não passará dos U$ 10 bilhões o total mundial dos pagamentos móveis até 2010.

Um banco de celulares – Daqui a quatro anos, estima Júlio Ramos, pouco mais de 3,2% das pessoas que possuem um celular farão algum tipo de pagamento através do aparelho. Ou seja, é longínqua a perspectiva de que o telefone móvel substitua o lugar de liderança que irão exercer, ainda por muito tempo, o dinheiro de papel e de plástico. E o executivo apontou o Brasil como um dos países onde o processo para desenvolvimento do m-payment ainda esteja em estágio embrionário, ao lado de potências como Estados Unidos e França. Enquanto, na outra ponta, que registra o degrau de desenvolvimento avançado – embora bem aquém de um patamar de maturidade – estariam Japão, Coréia do Sul, Singapura, Noruega e Áustria.

Traçando o histórico evolutivo do internet banking (i-banking) ao mobile banking (m-banking) até chegar à terceira onda dessa convergência digital, o m-payment, Júlio exemplificou com o caso pioneiro da japonesa NTT DoCoMo, e de cujo desenvolvimento a Accenture teve participação estratégica. Partindo do conceito de “contactless”(sem-contato), ou “por proximidade”, essa organização, em parceria com a Sony, estabeleceu a solução de um chip, chamado FeliCa, através do qual o pagamento de uma compra pode ser feita com a simples aproximação do celular ao terminal de leitura. “A DoCoMo solicitou licença financeira para lançar um produto que é um tipo de cartão de crédito que funciona só no celular”, contou o executivo. E adicionou que a empresa chegou ao requinte de abrir um banco onde os “guichês” de atendimento são os próprios telefones móveis.

“Apenas cinco meses após o início do serviço, em 2004, os provedores atingiram um milhão de usuários”, relatou Júlio, acrescentando que até o final deste ano esse número deverá ter-se elevado a 10 milhões. Mas o caminho ainda é árduo, reconhece o gerente sênior. Para consolidação de um modelo de negócio no m-payment há muitas arestas a serem aparadas. Os dilemas se situam nos custos e nos investimentos, além de aspectos de segurança. No caso dos micro-pagamentos, por exemplo, quem vai pagar a conta? “O aspecto realmente positivo é que ninguém vai carregar sozinho toda a responsabilidade por grandes investimentos”, concluiu.

Convergência complexa – Abrindo o painel O Futuro do Wireless Finance: A Convergência Bancos e Operadoras, Cícero Ferreira, diretor de Operações da M-Pay Brasil, explicou que a empresa, 100% nacional, é fruto de um acordo de tecnologia com a M-Pay da Eslovênia (grupo Ultra). Trata-se do “mobile payment system”, que propicia a transmissão de dados sobre o canal de voz de telefones celulares. Um grupo de empreendedores trouxe o conceito esloveno para o Brasil e adicionou ingredientes à idéia, de olho no potencial de transacionar pagamentos e serviços móveis. “É um canal para transporte de transação”, explicou Cícero, afirmando que se trata de único sistema em conexão com o “mundo Visa” até o momento.

E apresentou um exemplo: por meio desse processo, pode-se não só pagar a corrida de táxi como, a caminho do aeroporto, fazer o check-in do vôo, além de efetuar a recarga do celular pré-pago no próprio aparelho. Ele disse que a Eslovênia é hoje uma espécie de “Vale do Silício” no Leste Europeu, razão pela qual a ousada NTT DoCoMo já adquiriu 51% das ações da M-Pay naquele país. E finalizou com outro projeto-piloto avançado na Europa. Há uma loja McDonalds, na Hungria, em que você faz o pedido e paga através de celulares pendurados nas paredes. E depois vai buscar o produto solicitado.

Mas, enquanto a convergência entre bancos e operadoras já está consolidada no m-banking, o modelo proposto do m-payment ainda tateia em busca de uma harmonia funcional. Na concepção de Sérgio Goldstein, diretor de Negócios da EverMobile, outro palestrante, os entraves à arrancada do pagamento móvel se espelham nas frustrações advindas do primeiro piloto surgido em 2001. Foi um acordo entre operadoras de cartões e a Telesp Celular para pagamentos em restaurantes, utilizando o celular como “cartão de crédito”, mas que não prosperou. De acordo com Sérgio, existiam obstáculos de ordem tecnológica e de segurança. Só que não eram os principais. “O problema maior foi o conflito entre o modelo comercial e as aspirações específicas de cada integrante do projeto”.

Para o executivo da EverMobile, os empecilhos mais significativos são a falta de um modelo de negócio que acomode as partes, extremo conservadorismo das instituições financeiras, o medo da canibalização de receitas, a visão de ameaça por parte das operadoras, e práticas protecionistas de ambas as partes. E arrematou: “Só a colaboração mútua pode garantir o êxito desse business chamado m-payment”.

Já enfocando elementos do Direito Digital, essencial também para o incremento de ações nos pagamentos móveis, Juliana Abrusio, sócia do escritório Opice Blum Advogados e professora de Direito Eletrônico da Universidade Mackenzie, disse que a questão mais intrincada tanto para o m-banking quanto para o m-payment não é de ordem legislativa, mas sim de comprovação de crimes. “Como levar ao processo uma prova consistente, robusta, que não seja desconsiderada na corte?”, indagou. Segundo ela, a legislação é bem ampla. Hoje é crime a interceptação de transmissão de dados telemáticos e informáticos. “O judiciário já está até aceitando login e senha como dados de presunção de titularidade”, explicou.

Juliana lembrou, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) proibe a cobrança de dois serviços distintos numa mesma fatura. “Isso pode ser um problema para as operadoras no caso do m-payment’, salientou, chamando a atenção para o fato de que o pagamento móvel se insere sob a “tutela consumerista”, ou seja, está debaixo do rigor do CDC. Além de mencionar outro lado complicador da mesma moeda: a questão do anonimato, espinho jurídico nas lides do ambiente virtual. E exibiu um acórdão no qual o tribunal decidiu que o provedor da Internet é responsável pelo fornecimento de dados para investigação. Tanto assim que, por lei, os provedores têm de guardar as informações dos usuários por no mínimo três anos.

Como fica a questão de fraude em celulares pré-pagos, que não são registrados em nome de ninguém, e até podem passar de mão em mão? Ao responder esse oportuno questionamento de um dos participantes, a advogada afirmou que já houve um caso, nos Estados Unidos, em que a provedora de acesso foi responsabilizada. “Mas não há jurisprudência clara ainda a respeito. O importante é que as empresas que têm os dados construam uma muralha de proteção. Sob o risco de pagar por crime de responsabilidade”, aconselhou ela.

O celular nas duas pontas – Tendo como mediador o presidente da Accenda, Gustavo Camargo, os blocos que trataram das perspectivas para as operadoras de telecomunicações e os primeiros casos bem-sucedidos que testam o mercado foram abertos pelo diretor de Marketing da Claro, Germano di Polto. A empresa, que é controlada pela América Móvil, a principal operadora de celular da América Latina com mais de 110 milhões de aparelhos, já tem sua plataforma (m-banking) sedimentada e conta com cinco instituições financeiras parceiras, permitindo aos clientes consulta de saldos, transferências, DOCs e aplicações por meio da plataforma WAP 2.0.

De acordo com o executivo, hoje pelo menos 90% dos aparelhos da empresa já são vendidos com esse recurso. E a operadora também analisa outras plataformas para o mobile payment além do WAP, como o chip (Simcard) integrado no celular com chaves de segurança das instituições financeiras parceiras. E é possível, também, a aplicação em Java, através da qual o cliente baixaria um software para ter acesso aos recursos do pagamento móvel. De qualquer forma, no bojo dos dilemas ainda existentes, haveria a dúvida entre as operadoras quanto à rede a ser usada na transação. Tanto poderá ser a GPRS, empregada para pacotes de dados, ou rede de voz, ou ainda a plataforma de SMS.

Dentro desse conceito de plataforma de SMS, os brasileiros já têm à disposição o primeiro cartão de crédito dentro do celular. Trata-se do “Oi Paggo”, uma solução tecnológica lançada pela Oi (grupo Telemar) em parceria com a administradora de cartões Paggo, que permite não só ao cliente efetuar o pagamento, mas também o próprio comerciante receber, tudo através do aparelho celular. Neste caso, o celular funciona não apenas como cartão de crédito, mas também substitui o tradicional terminal POS.

Entre as vantagens do “Oi Paggo”, Bruno Diehl, responsável pela solução Mobile Payment da Oi, além da convergência possibilitada pela plataforma de SMS, listou a tecnologia GSM, com a totalidade das transações autorizadas por senha pessoal e a rapidez, sendo que a transação ocorre em questão de 20 segundos. Além disso, é 100% on-line e via web, sendo o faturamento feito em contas separadas – a do celular e a dos gastos no cartão de crédito virtual.

Para os lojistas, Diehl relata o benefício do custo fixo mensal mais baixo, uma vez que não há gasto com aluguel de POS. “Todas as operações do Oi Paggo têm custo zero”, garantiu o executivo. Segundo ele, há também menor possibilidade de charge-back, pois o próprio portador digita a senha, além do conforto da mobilidade nos dois lados da transação. E ainda que ofereça ao consumidor a isenção de anuidade e ampla rede de aceitação. O projeto-piloto do Oi Paggo teve início em julho deste ano em Natal/RN e na cidade de Uberlândia/MG, em outubro, numa rede de 200 estabelecimentos, favorecendo cerca de 12 mil portadores de celulares. De acordo com Bruno Diehl, já são registradas aproximadamente 80 transações ao dia.

Já do lado dos bancos, enquanto se discute que tipo de fórmula competitiva pode fazer frente aos canais financeiros de pagamento já existentes, quem sai na dianteira é o HSBC. Foi a primeira instituição a apostar na plataforma de pagamentos eletrônicos M-Cash. Um negócio que nasceu por iniciativa da Megadata (grupo Ibope), mas que pela magnitude de suas perspectivas acabou virando uma empresa. O presidente da M-Cash, Gastão Mattos, um dos palestrantes da Conference Cliente SA, afirmou que se trata do único meio universal de captura de compras pelo celular atualmente no mercado. Porque funciona com qualquer operadora, todo tipo de aparelho, seja no serviço pré ou pós-pago, e com ambas as tecnologias (CDMA ou GSM).

“Por ser universal – assegura Mattos -, o M-Cash é a única forma de m-payment com potencial para alcançar as quase 100 milhões de linhas celulares distribuídas pelo País”. O foco inicial, com função de débito, foi em lojas de comércio eletrônico, tais como americanas.com, comprefacil.com.br, mmartan.com.br e sacks.com.br. Colocado à disposição da base de 4 milhões de clientes do HSBC Brasil, o sistema já está sendo testado também para os cadastrados que desejam fazer aquisições na loja on-line da Livraria Cultura. “E não vamos parar por aí”, anuncia o presidente da M-Cash. A empresa promete estender o recurso para a função de crédito, cooptando outras instituições financeiras para o sistema.

Caça à vulnerabilidade – Antigamente, você construía grandes muralhas e pronto, estava delimitado e protegido o seu território. Hoje, as novas tecnologias exigem muito mais esforço na questão da segurança. O axioma, proferido por Alberto Bastos, sócio-fundador da Módulo Security, faz sentido quando se está abordando um mundo ainda mais novo. Traçando um painel da evolução da Tecnologia da Informação, desde o ex-todo-poderoso mainframe até os sistemas convergentes de hoje – abrindo o painel Wireless Security – Segurança em Pagamentos Móveis -, o empresário afirmou que os criminosos já descobriram: é quatro vezes maior a possibilidade de serem pegos em flagrante num delito cometido no mundo físico do que no virtual. “A segurança da informação, por isso, vai caminhar na direção da integração com a gestão de risco e compliance (leis e regulamentação). Ou seja, é preciso definir qual o nível máximo de risco que se quer correr. Porque um risco qualquer sempre haverá. O desafio é estabelecer uma linguagem única”, afirmou.

“Conhecer nossas vulnerabilidades é o primeiro passo para se ganhar uma batalha”, disse, por sua vez, o Lead Auditor da Módulo, Márcio Moreira da Silva, citando o velho e bom Sun Tzu. Segundo ele, as ondas de rádio desconhecem barreiras físicas. Mesmo em empresas onde a política de segurança não permite a utilização de redes wireless, a monitoria rigorosa precisa ser feita. “Pois a organização fatalmente receberá ondas de outras empresas, e é por onde a informação pode vazar”, advertiu.

Então, quem diz que criou um sistema totalmente seguro está mentindo deliberadamente, ou então não sabe do que está falando. Com essa afirmação tida como polêmica, por sua vez o especialista em Segurança da Alcatel-Lucent, Paulo Perez, incendiou os debates. Segundo ele, qualquer rede de comunicação é vulnerável. E enumerou os aspectos de segurança que devem ser invariavelmente considerados: controle de acesso, integridade, disponibilidade, autenticidade, confidencialidade e não-repúdio. “Se apenas um desses aspectos deixar de ser observado, fatalmente haverá problemas de segurança em algum momento”.

Para Perez, há ainda muita incerteza sobre a tecnologia de redes que melhor vai se adequar ao pagamento móvel: Wifi, GSM, GPRS e EDGE, CDMA, CDMA-1x e EVDO, UMTS e Wimax. Mesmo quanto a esta última, em princípio a mais indicada, há remotas perspectivas de sua aplicação em larga escala no curto prazo. E recomendou ainda que nenhuma parte do processo seja tida como confiável. Além de se evitar a todo custo o armazenamento de senhas, certificados e similares. “Protocolos adicionais de criptografia devem ser utilizados sempre”, recomendou.

E encerrando o ciclo de debates, Giuliano Giova, diretor do Instituto Brasileiro de Peritos em Comunicação Eletrônica e Telemática, enfocou a complexidade dos laudos periciais no caso de crimes eletrônicos. Segundo ele, estão sendo criados métodos modernos para rastreamento e análise pericial de evidências digitais. “Não parece seguro realizar esses exames complexos de forma isolada, sem se considerar os ambientes tecnológico e jurídico como um todo”, afirmou, mostrando a importância de uma abordagem não só sistêmica como multidisciplinar nesses laudos.

E concluiu exemplificando – numa evidência da amplitude que tomará de vez o trabalho de perícia em crimes de natureza digital -, com a “wifi city” em que se transformou a cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos. Ali, o wireless é generalizado. “Será que os peritos da Justiça terão, a cada momento, condições técnicas tão sofisticadas para acompanhar esse desenvolvimento tecnológico?”, questionou.

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