As profundas transformações que estão dando ao mundo digital o incontornável protagonismo em todos os mercados esbarram, no Brasil, nas dificuldades de um passado ainda não resolvido. De nada adianta a profusão de siglas que toma conta da gestão de clientes se, por outro lado, as organizações não se juntarem para ofertar crédito e condições de materialidade para a inserção dos novos consumidores no universo digital. O momento, então, é de muita flexibilidade e rapidez de ação em esforços unificados na busca de respostas ao descompasso ainda existente. Com números e análise detalhada da transição atual, essas reflexões foram compartilhadas, hoje (10), por Michel Alcoforado, sócio fundador da Consumoteca, durante a 179ª live da série de entrevistas dos portais ClienteSA e Callcenter.inf.br.
Já é possível se falar num novo perfil de consumidor pós-pandemia, iniciou o executivo da consultoria especializada em análise de tendências e mercados. Falando como antropólogo, ele disse que tem a preocupação de entender quais mensagens a epidemia trouxe à sociedade. Dentro disso, o impacto mais expressivo não se dá apenas na área da saúde, mas também no âmbito social. “O movimento DAD, um mundo em que temos muito fortemente uma Desmaterialização pautando as transformações. Ou seja, uma conversão generalizada ao mundo digital. O segundo aspecto é Assepsia, fundamental, porque as pessoas agora querem saber como será garantida sua segurança no contato com as organizações”. Em terceiro, vem a Descontextualização, que é a vida transformada em um grande fluxo, com o fim da relação entre tempo, espaço e comportamento ao qual todos estavam acostumados.
Trata-se, em sua análise, de uma contaminação que o vírus provocou também no mindset dos empreendedores e colaboradores, tendo de assumir com naturalidade, por exemplo, o novo funcionamento em regime 24 x 7. “A principal guinada das organizações e consumidores é não mais encarar o digital como o real piorado. A valorização desse caminho, com o consumidor atuando sem resistências, é uma trajetória sem volta.” Dentro desse panorama, as organizações não têm mais como convencer os colaboradores que estão bem na produtividade à distância no sentido de voltarem ao presencial. Em resumo, o mundo que se avizinha é mesmo novo e inevitável.
Instado a mostrar alguns números que sustentem essas opiniões, Alcoforado exemplificou: à medida que o vírus foi-se espalhando, houve aumento de 70% no consumo de Internet e do celular. Isso representa um reflexo claríssimo no mercado. “Uma mudança gigantesca no processo de digitalização. O caso do crescimento exponencial da Amazon é um exemplo. No início da pandemia, o market share da venda on-line nos supermercados quase triplicou, de 3% para 8%. As pessoas começaram a comprar fortemente comida via digital. Quando olhamos para esse processo, chamamos a atenção para o que ocorre no Brasil onde uma categoria como a indústria da moda, que perdeu 78% do seu varejo.” Em contrapartida o consultor entende que a crise atual ajudou muito o segmento das bebidas, porque nesse novo mindset não é mais preciso esperar pela sexta-feira para se tomar os drinques. Também, o consumo nos supermercados, detalhou ele, deixou de acontecer mais nos fins de semana e passou a ser diário.
Ainda de acordo com as análises, o pagamento para aproximação e por QR Code são transações que ganharam a confiança do consumidor, pavimentando o território do Pix, do open banking, etc. Uma série de mudanças que não têm mais retorno. “No Brasil, o problema é que temos de pensar no futuro sem ainda haver resolvido o passado. Esse é um problema para as empresas. Por trás das siglas que proliferam na área de gestão de clientes, tais como CX, UX, CS, a verdade é que essa forte tendência para o digital esbarra no fato de o país apresentar áreas com muito atraso.” Como exemplo, ele citou que 42 milhões de brasileiros jamais entraram na internet. Nem imaginam que universo é esse, embora, de uma forma ou outra, disse ele, essas pessoas são também consumidores. Além disso, informou que 70% navegam na rede mundial em condições ainda muito precárias. “Como a empresa se digitaliza se o consumidor está em descompasso com isso?”, indagou. “Trata-se de fazer a alfabetização digital num país que não eliminou os analfabetos em geral. Além disso, o desemprego em massa ocasionado pela crise sanitária vai criar um atraso maior ainda aos afetados até que retornem ao consumo.” Na sua concepção, por mais que o digital seja uma maravilha, a inserção do público exige materialidade na ponta, que são os computadores, celulares, conexão, etc, sem o que a pessoa não tem condições de corresponder.
A mudança de cultura, registrou o sócio-fundador da Consumoteca, é um processo que tem o seu tempo, enquanto a economia está demandando muita rapidez, e isso é um conflito. Questionado sobre as perspectivas do mercado de consumo em geral e a gestão de clientes, ele disse que a nova realidade não é melhor nem pior, mas apenas diferente. “O problema de criar materialidade para os consumidores migrarem para o digital é uma questão que desafia todos os players. Se a empresa perceber que o consumidor só vai comprar em sua plataforma digital se tiver crédito, cabe à própria organização se mexer para resolver essa questão.” Nesse sentido, o consultor propugnou a união das companhias em geral para buscarem soluções, inclusive junto a órgãos governamentais. Porque a realidade do país, segundo ele, é que 70% das famílias brasileiras que têm renda média mensal familiar de até R$ 3 mil, “o que é muito pouco”.
Outra tendência apontada foi a necessidade de juntar todas as possibilidades de comunicação e transações em um só lugar. Ou seja, na avaliação de Alcoforado, a importância dos super apps e suas inumeráveis alternativas facilitando o contato. “Os maiores interessados em consolidar as transformações, ajudando a construir um terreno firme para as mudanças, são as próprias empresas. Por exemplo, a diminuição das desigualdades sociais é de interesse profundo delas, porque todos precisam entrar no consumo” Encerrando o bate-papo, o especialista disse que os segmentos têm mesmo de se juntar para fazerem as transformações acontecerem, percebendo que o mundo pós-pandemia demanda uma enorme flexibilidade de ação, como se não houvesse limites. “As organizações terão que cuidar do digital e dos pontos físicos com o mesmo cuidado. Buscar o equilíbrio com confiança, porque sobreviveremos”, finalizou.
O vídeo com a entrevista na íntegra está disponível em nosso canal no Youtube. Aproveite para também se inscrever e ficar por dentro das próximas lives. Amanhã (11), a série de entrevistas fecha a semana com o “Sextou? Híbrido”, especial de encerramento do ano, fazendo um balanço das mudanças de comportamento do consumidor em 2020 e as perspectivas para o próximo ano na gestão de clientes. Estão confirmados os seguintes líderes: Adriana Gouveia, head de atendimento do C6 Bank, Alecsandro Cavalcante, head of customer care da Globoplay; Augusto Puliti, sócio de CX na KPMG; Daniela Guillen, diretora de produtos e user experience, Fabio Leme, vice-presidente da HDI Seguros, Juliana Sandano, superintendente executiva de ciclo de vida do cliente do Banco Original; e Luis Guilherme Sanches Prates, vice-presidente comercial da Atento no Brasil. Também garantiram presença: Marcos Calliari, CEO da Ipsos; Maria Carolina Santos, gerente de excelência da Gol; Michel Rodrigues, diretor de relacionamento com o cliente do UOL; Paula Pimenta, diretora de atendimento ao cliente na Natura &Co para América Latina, Simone Fett, gerente de customer sucess na Contabilizei, e Thiago Quintino, diretor executivo de innovation, customer experience, CRM and quality management da Fast Shop.