Autor: Rafael Motta e Correa
No dia 15 de março comemora-se o dia nacional do consumidor. Esta data foi oficializada no Brasil pela Lei Federal nº 10.504, de 08 de julho de 2002, com o escopo de difundir os direitos do consumidor em todo o país. Mas será que há motivos para tal comemoração?
A noção atual de consumidores surgiu, historicamente, com o início do sistema capitalista, mas foi na Revolução Industrial no final do século XVIII, transformadora das relações políticas, sociais e econômicas, que a relação entre consumidor e fornecedor começou a ter contornos próprios. Notadamente, em meados do século XX, com o desenvolvimento tecnológico e científico, houve um significativo aumento na capacidade produtiva das indústrias, e nesta esteira de desenvolvimento, a distribuição e a comercialização dos produtos manufaturados passaram a ser massificados.
Este fenômeno da massificação nas relações de distribuição e comercialização também implicou na massificação dos contratos. O maior exemplo disso é o contrato de adesão, impondo ao consumidor um contrato não passível de negociação ou discussão, tornando o princípio da autonomia contratual ou da vontade soberana das partes para estabelecer o conteúdo contratual absolutamente injusto para o consumidor. Deste modo, o direito material de então, apegado aos princípios civilistas, não respondia ao desequilíbrio contratual inerente às relações de consumo, exigindo, portanto, novos enfoques e novas regras.
A Constituição Federal de 1988, ao tratar da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, manda observar, em aparente contradição, a livre concorrência e a defesa do consumidor, destacando, de pronto, as relações de consumo no universo das relações jurídicas.
As relações de consumo, destacadas constitucionalmente dentro das relações jurídicas, mereceram a seguir, o trato próprio, com base em estudos enfocados no direito consumerista, e no tratamento dado a essas relações em outros países, por meio da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, também denominada como Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor trouxe inovações e peculiaridades que revolucionaram o tratamento dado às relações jurídicas de consumo, ditando regras próprias para o conteúdo negocial e para a interpretação de tais relações, cerceando a liberdade contratual e o alcance da pretensa manifestação de vontade do consumidor nos contratos de adesão por ele pactuado, bem como a superação da teoria da relatividade dos contratos, possibilitando alcançar-se, dentro do conceito de fornecedor, todos os agentes econômicos, direta ou indiretamente, envolvidos na relação de consumo.
Nesse contexto revolucionário, cabe lembrar a proteção contra os desvios de quantidade e qualidade do produto, a ampliação das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica das empresas fornecedoras, a normatização da oferta e publicidade do produto, o controle das práticas e cláusulas abusivas, a facilitação do acesso à justiça para o consumidor, e a inclusão de sanções administrativas e penais contra os desvios do fornecedor na sua atuação. Todas estas inovações coadunam-se aos princípios norteadores das relações de consumo e lhes dão eficácia.
O Código de Defesa do Consumidor, ainda, disciplinou os meios processuais para concretizar a proteção dos direitos difusos do consumidor, trazendo ao sistema processual, de forma inovadora, a possibilidade de se ajuizar ações coletivas.
Desse modo, pode-se concluir que a primeira finalidade da lei consumerista é a proteção incondicional do consumidor, o que estaria coerente inclusive com a sua denominação, Código de Defesa do Consumidor.
Poderia ser dito haver uma contraposição aparente entre os princípios da defesa do consumidor e o modelo constitucional prescrito para a ordem econômica. Esta contraposição estaria latente no próprio Artigo 170 ao estabelecer que a declaração da ordem econômica se fundamenta na valorização do trabalho e da livre iniciativa, com o fim de assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social, mandando observar a Defesa do consumidor.
Será que a exacerbada proteção do consumidor está de acordo com os princípios do Artigo 170 da Constituição Federal?
A resposta a esta questão é dada pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, em seu Artigo 4º, inciso III, ao determinar, dentro das diretrizes da Política Nacional de Relação de Consumo, a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade do desenvolvimento econômico e tecnológico de modo a viabilizar os princípios da ordem econômica (Art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
Será que hoje em dia a aplicação do Código resulta no total equilíbrio das relações de consumo, na qual a “balança” da justiça não penderia para nenhum de seus lados, seja do consumidor, seja do fornecedor? Será que as regras protecionistas do CDC, nestes seus dezessete anos de vigência, atingiram um de seus principais objetivos, qual seja, a harmonia entre os protagonistas da relação de consumo?
O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor certamente precisa ser louvado pelas brilhantes inovações. Contudo, os aplicadores e estudiosos do direito não podem perder o seu principal foco que é a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo”. Agora, novamente lhes pergunto, devemos comemorar o Dia do Consumidor, ou o Dia da Harmonização das Relações de Consumo?
Rafael Motta e Correa é advogado da Koury Lopes Advogados.