Contam alguns cronistas da história empresarial que, no começo do século passado, a mãe do magnata David Rockfeller costumava visitar lojas de Nova Iorque vestida de forma muito simples. Era uma pessoa de hábitos modestos, mas fazia compras para a família em estabelecimentos de primeira linha. Os atendentes sequer imaginavam que estava ali, diante deles, simplesmente a progenitora do homem mais rico do mundo na época. E, muitas vezes, discriminavam a singela senhora. Perdendo, com isso, o cliente mais cobiçado da América de então.
Quem assistiu ao excelente filme Pretty Woman pôde constatar cena semelhante. A prostituta vivida por Julia Roberts é esnobada e maltratada numa requintada loja, enquanto carregava, escondido na bolsa e liberado para gastos ilimitados, o cartão de crédito do milionário interpretado por Richard Gere. Ou seja, como quase nunca se sabe quem está efetivamente do outro lado do balcão ou da linha telefônica, fica aberto um filão estratégico a ser explorado pelas organizações que desejam checar se os padrões de atendimento estão sendo cumpridos.
Trata-se do emprego sistematizado do Cliente Misterioso (CM). Uma pessoa comum contratada em regime de free-lancer para se fazer passar por um consumidor qualquer, constatando in loco, ou via telefone/internet, a performance dos canais de atendimento. E que, de posse de um questionário a ser preenchido, vai relatar de forma objetiva e direcionada, às áreas responsáveis pelo relacionamento com o cliente, como é que a empresa está se saindo frente ao consumidor.
Complemento de pesquisa – Segundo Mário Mattos, diretor da GfK Indicator – organização fundada em 1987 e incorporada ao grupo alemão que é o quarto maior do mundo em pesquisas de mercado – o CM se configura como uma ferramenta de pesquisa de campo extremamente flexível. O uso clássico, tradicional, segundo ele, é a avaliação dos padrões determinados em relação à aplicação dos mesmos no atendimento. “Realmente, é uma metodologia de avaliação da conformidade dos padrões. Não visa medir o nível de contentamento do eventual cliente. Deve ser aplicada em conjunto com as pesquisas de satisfação. Mas, o importante para a empresa que se utiliza do CM é verificar o quanto da estratégia desenhada para o atendimento está de fato sendo aplicada”.
Na definição do diretor da GfK, o CM funciona como o “olho” da empresa diante do atendimento ao cliente. Por isso, é preparado um questionário claro e conciso daquilo que interessa à empresa saber. “Tudo funciona na base do ´sim´ e do ´não´” – destaca. “A subjetividade do ser humano ali representado pelo CM deve ser usada apenas, eventualmente, como um complemento de informações. Nunca é o foco”.
Por isso mesmo, Mattos diz que o esforço de quem oferece os serviços desse “falso cliente” é contar com os préstimos de pessoas comuns. Em geral consumidores com afinidades ao produto ou serviço que está em análise na pesquisa. “Esse é o recurso mais usado, o da atuação de pessoas selecionadas de acordo com o hátbito e o perfil daquele tipo de consumidor específico. Mesmo porque o atendente, dessa forma, jamais desconfiará e que se trata de uma simulação, uma sondagem estratégica”.
O executivo cita, ainda, outros dois casos em que se aplica com benefícios a figura do CM. Num deles, o agente é, na verdade, um auditor que vai checar aspectos eminentemente técnicos do negócio. Tem que ser um profissional especializado e que, no mais das vezes, acaba se revelando no momento da visita ao estabelecimento. O outro tipo de uso se dá quando os agentes – pessoas comuns – sondam, por telefone, internet ou in loco, o atendimento do concorrente. O objetivo aqui é saber o que os competidores da empresa estão oferecendo, como estão atendendo, que diferenciais apresentam, etc.
Visita premiada – Uma das aplicações mais completas permitidas pelo emprego do CM, de acordo com Mattos, é a que empreende três medições dos níveis de atendimento, permeadas com duas visitas do agente de pesquisa. Ou seja, a empresa faz um levantamento dos parâmetros a serem analisados. Treina toda a equipe de atendimento. Após a primeira visita do CM, compara os índices para ver o grau de melhora possível pós-qualificação do pessoal. Se necessário, retoma o treinamento e provoca nova visita do CM. No final, haverá todo um quadro analítico do desenvolvimento de pessoas para o relacionamento com os clientes. “Esse reforço do treinamento só será possível com a intervenção estratégica do CM nos locais de atendimento. Além disso, é a melhor forma de se medir o retorno do investimento no treinamento”, pondera.
Além dos “auditores misteriosos”, há uma outra ocasião em que o CM se revela, informa Mattos. É quando, dentro da estratégia, se prevê que o atendente, ao se mostrar cumpridor daquilo que se esperava dele, é “flagrado” positivamente e o CM anuncia a todos o êxito conseguido. “A visita premiada, como é chamada, só acontece para destacar aspectos positivos do atendimento. Jamais o CM irá se revelar caso o atendente esteja descumprindo as orientações recebidas”.
A GfK trabalha há aproximadamente 12 anos com essa ferramenta no mercado brasileiro. Segundo o executivo, a organização conta, sem seu banco de agentes, cerca de 20 mil pessoas cadastradas em nível nacional. Filtros informatizados permitem à empresa definir quais os perfis se adequam para cada tipo de pesquisa. E apresenta um detalhe interessante: cada pessoa só pode atuar como CM a cada quatro meses. “Isso é necessário porque buscamos o máximo de isenção possível. Não queremos profissionais do ramo. Ninguém pode esperar ganhar a vida como CM. Sequer pagamos salários para essas pessoas. Elas atuam basicamente em troca do consumo oferecido na hora da visita, ou algo parecido. Embora estejam escondidos sob o sigilo do CM, são mesmo consumidores comuns testando os aspectos relevantes do atendimento para a empresa que nos contratou”.
Caráter não-policialesco – Já para Marcello Guerra, diretor da Somatório Pesquisa & Informação – empresa que há 17 anos atua no segmento de pesquisa de mercado, marcas e clientes -, o cliente misterioso é uma metodologia que deve ser inserida apenas numa política global de qualidade no atendimento. “Trata-se de uma técnica de investigação e pesquisa do que ocorre no atendimento aos clientes, notadamente em empresas do varejo. Entretanto, é uma ferramenta a ser usada para avaliação objetiva desse atendimento para conformidade dos padrões preestabelecidos”.
O executivo confirma que a primeira ferramenta deve ser mesmo a pesquisa de satisfação dos clientes. Só então, segundo ele, emprega-se a estratégia do cliente misterioso, após montagem específica do script e dos fatores a serem analisados. “O ideal é tentar expurgar ao máximo os aspectos subjetivos da investigação. Antes do CM ir a campo, deve passar por intensivo processo de qualificação e treinamento. E cada visita desse agente tem de ser customizada. Sempre de acordo com os parâmetros e o target determinados a priori segundo o escopo geral daquela empresa específica”.
Marcello faz questão de salientar o caráter não-policialesco da atuação do cliente misterioso. “Esse agente camuflado de consumidor deve realizar sempre uma auditoria de processos e não uma fiscalização do trabalho das pessoas. Esse serviço tem de estar de acordo com o código de ética da ABEP (Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa), que é alinhado a parâmetros internacionais. Um diagnóstico de um determinado processo e jamais ser associado nominalmente”.
Por isso, no entender do diretor da Somatório, a necessidade de que seja realizado o bom serviço de qualificação desse profissional e uma clareza dos objetivos que são invariavelmente a síntese da conformidade com padrões desenhados para cada negócio específico. “Estamos, dessa forma, disseminando a cultura do Cliente Misterioso. O que é e para o que serve”, afirma, complementando que, a partir desse trabalho, as providências podem incluir a realimentação do sistema de treinamento do pessoal de atendimento.
Além dessa averiguação presencial, a atividade do CM pode envolver, anteriormente, a simulação por telefone ou internet. E Marcello cita como exemplo o atendimento para consultas em ambulatórios, exames clinicos, etc. O roteiro do CM deve indicar, por exemplo, tempo de espera, disponibilidade do atendente, cordialidade, eficácia, etc. E tudo isso se complementa, ou não, com o presencial (no caso da Somatória Pesquisa, cerca de 30% do faturamento com atividaes do CM vem da pesquisa por telefone e/ou internet).
Esclarecendo que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer, na comparação com os Estados Unidos – onde há inúmeras organizações inteiramente dedicadas apenas aos serviços de CM -, o executivo detalha as variáveis extremamente flexíveis a favor dessa estratégia de aferição de qualidade no atendimento: “O escopo definido em cada projeto pode determinar que esse agente de pesquisa seja do sexo masculino ou feminino, qual a idade ideal do agente e, até mesmo, critérios que envolvam as raças. Porque o nosso cliente pode estar querendo, por exemplo, averiguar se há disparidades desse tipo no atendimento presencial. Podem ser vários agentes cobrindo toda uma rede, ou mesmo um único CM para levantar as conformidades num estabelecimento. Mas mesmo entre todas essas possibilidades (discordando do uso da “visita premiada”) o CM jamais, em hipótese alguma, deve ser revelado ao atendente, antes, durante e depois de sua atuação”.
Camiseta do concorrente – Nos Estados Unidos, o mistery shopper já se tornou uma presença constante nos programas de controle de qualidade das grandes redes varejistas e prestadores de serviços. Diferentemente do que ocorre no Brasil, nos EUA é grande o número de organizações especializadas estritamente no fornecimento de serviços do cliente misterioso. “No País, a demanda por esse serviço vem crescendo nos setores financeiro, de varejo, auto-serviço, hoteleiro e automobilístico, além de companhias aéreas, livrarias, butiques e salões de beleza”, informa, por sua vez, Stella Kochen Susskind, que fundou a Buy&Test em 1990, empresa especializada nesse tipo de prestaçao de serviços e que, recentemente, foi incorporada pela TNS InterScience, com 22 anos de atuação no setor de pesquisa de mercado.
Segundo detalha Stella, a Buy&Test já foi responsável pelo desenvolvimento de mais de 300 projetos, muitos deles realizados em parceria com a TNS InterScience, atendendo grandes organizações. “Com esse instrumento, é possível avaliar itens como o visual e disponibilidade dos atendentes, potencial para venda por sugestão e o ambiente, além de serviços como troca, assistência técnica, consertos, pós-venda, centrais 0800 e delivery, incluindo também serviços on-line pela internet”.
Ela confirma que a avaliação das empresas é feita a partir de questionários que são respondidos pelos profissionais “ocultos”. O número de CMs que comparecem à empresa, assim como o horário das visitas e o que deve ser apurado são indicados pela própria contratante. “Todo serviço é adaptado de acordo com as diretrizes da empresa e seu segmento de atuação e o projeto é 100% customizado”, esclarece Stella. Ao final do processo, os questionários são analisados e é feita uma tabulação com os pontos mais fortes e fracos das unidades avaliadas. O serviço pode ser contratado de forma esporádica ou permanentemente e aplicado tanto numa unidade quanto em toda uma rede.
De acordo com a executiva, os relatórios do CM revelam experiências que somente um consumidor real poderia ter. E cita dois relatórios de pesquisas realizadas num hotel cinco estrelas e numa rede de confecções. No primeiro caso, o profissional narra: “Cheguei ao hotel às 23h30, sem reserva. A recepcionista me atendeu gentilmente. O carregador me mostrou o menu do room service e enfatizou que a comida era excelente. Em seguida, me vendeu o serviço de fitness center!”. Já no caso seguinte, a descrição revelou: “A vendedora não sorriu, não me cumprimentou, não me abordou. Estava com os cabelos mal-arrumados, maquiagem borrada e hálito de cigarro. E ainda usava camiseta com nome de um concorrente”.
Exército de “espiões” – Outra organização que foca seus negócios nessa ferramenta metodológica de avaliação é a Bare Associates International, empresa de cliente misterioso recém-chegada ao País – a BAI Brasil – e tem planos ambiciosos para os próximos. Após abrir essa sua primeira filial na América do Sul, a empresa prevê duas novas unidades neste ano, em Xangai, na China, e na França, e mais duas outras no ano que vem, localizadas na Inglaterra e Alemanha, com a possibilidade de uma terceira na Austrália.
Para Ronaldo Carlos de Oliveira, diretor da BAI Brasil, o emprego do CM visa melhorar a qualidade do atendimento ao cliente, identificar necessidades de treinamento, premiar/promover funcionários, documentar a performance de vendas dos funcionários, bem como seu conhecimento sobre os produtos/serviços.
Na América do Sul – avaliada por Michel Bare, presidente da empresa, como um mercado ainda em estágio inicial no quesito qualidade e padronização de serviços – os próximos investimentos devem acontecer apenas daqui a dois anos. “O mercado norte-americano é maduro em relação aos serviços de cliente misterioso”, afirma Bare. “O europeu entra como o segundo mais explorado, e o sul-americano é considerado um mercado muito recente e jovem”.
Enquanto isso, explica Ronaldo, a empresa continua a apostar na idéia de que a qualidade do atendimento e a padronização dos serviços são ferramentas essenciais na melhoria dos aspectos negativos e na capacidade de premiar o quadro de funcionários. E investe nessa idéia “para alterar a mentalidade e a cultura das empresas a fim de que clientes e funcionários mantenham sempre a harmonia necessária para que os dois lados do balcão estejam sempre contentes”.
A Bare Associates International, com 18 anos de experiência, segundo Ronaldo, “tem conquistado, ao longo destes anos, grandes e renomados clientes no mundo inteiro, como a rede de hotéis Hilton International, Marriot Worldwide, além da Microsoft, Mercedes e mais recentemente lojas da rede McDonald´s na Ásia, e conseguido mostrar a gerentes, diretores e executivos a importância de alterar a cultura de suas empresas a fim de melhorar a qualidade dos serviços prestados”.
Há cinco meses no Brasil, o banco de dados da empresa já registra mais de mil candidatos inscritos em seu site para o recrutamento de clientes misteriosos. “O número passa dos 112 mil no mundo inteiro. Um verdadeiro exército de espiões treinados e certificados para avaliar os serviços de hotéis, restaurantes, redes de concessionárias e uma dezena de outros estabelecimentos”, conclui o executivo.
Empresa seleciona clientes misteriosos
Percorrer lojas e avaliar o atendimento é atividade que pode render um dinheirinho extra para quem dispõe de algum tempo livre
Pessoas de ambos os sexos e com atividades diversas -profissionais liberais, estudantes ou mesmo donas de casa – que disponham de algumas horas vagas por dia e procuram um trabalho free-lancer para aumentar o orçamento pessoal ou familiar, podem se candidatar a uma vaga de “cliente secreto” em recrutamento aberto pela empresa Buy&Test, uma das líderes do mercado no oferecimento desse serviço.
Recentemente incorporada pela TNS InterScience, com 22 anos de atuação no setor de pesquisa de mercado, a Buy&Test está expandido suas atividades, contando para isso com a ampliação de sua equipe de campo nesse segmento. A principal função do cliente secreto, também chamado de mistery shopper, é percorrer lojas e verificar o que ocorre nos pontos-de-venda, fazendo as vezes de “olho do dono”. Os candidatos passam por um processo de seleção, que envolve dinâmicas de grupo e testes de redação, e são treinados de acordo com o segmento e características dos consumidores reais. Os “espiões” podem investigar tudo e depois ir embora ou efetivamente fazer compras e trocas de mercadorias.
Segundo Stella Kochen Susskind, que fundou a Buy&Test em 1990, o trabalho do “cliente secreto” contribui para avaliar, com eficiência, o que vai bem ou mal numa organização. “A ação é sempre realizada na ausência do principal executivo da empresa ou de seus gestores diretos, geralmente responsáveis pela contratação desse serviço, e testa desde a eficiência do atendimento e limpeza das instalações até a aparência e postura dos funcionários, entre outros fatores críticos”, ressalta.
A MÚLTIPLA TAREFA DO CLIENTE MISTERIOSO
Alguns dos diferentes segmentos da economia costumam usar o CM com estas finalidades básicas:
Empresas aéreas:
· Check in
· Embarque
· Viagem
· Desembarque
· Serviços de bagagem
Bancos:
· conhecimento dos funcionários quanto ao que estão oferecendo
· técnicas de venda de produtos, como contas e investimentos
· exigência da documentação mínima, as informações fornecidas sobre planos e suas tarifas, mensalidade e mesmo sobre as exceções, que o cliente só descobre depois
Supermercados:
· atendimento ao cliente (simpatia, rapidez, prontidão, personalização do serviço)
· limpeza
· Colocação dos produtos e preços nas gôndolas
· Adequação da exposição de produtos nas seções de atendimento como panificadoras e açougues.
Combustíveis:
· Utilização do “falso motorista”
· Serviços de atendimento nos postos de combustíveis
· Serviços de atendimento nas lojas de conveniência
Hotéis:
· qualidade do atendimento
· honestidade dos funcionários
· capacidade de vendas (oferecer no restaurante os pratos mais caros, complementar os serviços e as vendas extras)
Redes de fast-food:
· atendimento na boca do caixa
· limpeza do estabelecimento
· vendas cruzadas (oferecer a sobremesa, por exemplo, para acompanhar o lanche pedido)
Concessionárias de automóveis:
· performance do time de vendas
· capacidade de persuasão
Telecomunicações:
· número de toques dados
· cordialidade do atendimento
· checagem do treinamento dado ao atendente
Serviços pela internet:
· monitoramento da aquisição de assinatura,
· problemas técnicos
· pagamento
· cancelamento de assinatura
· entendimento do usuário dos termos técnicos de informática