Quem está na casa dos trinta anos deve lembrar-se dos discursos empolados do professor Astrogildo, personagem do saudoso Dias Gomes na minissérie O Bem Amado, proferidos com entusiasmo e português castiço nas solenidades públicas da famosa Sucupira. Todos aplaudiam, mas ninguém entendia nada do que o professor falava, mesmo assim admiravam sua habilidade e refinamento. Felizmente, foi-se o tempo em que falar bem era falar difícil, mesmo que muitos ainda acreditem no contrário.
Cada vez mais, em tempos de globalização, muitos profissionais buscam aprimorar suas habilidades e, na melhor das boas intenções, freqüentam avidamente cursos de inglês, espanhol, informática, dentre outros. Mas quando se trata de estudar nossa língua optam por dois caminhos que conduzem ao mesmo lugar – o da frustração. O primeiro é o mais fácil. Alguns buscam soluções milagrosas em manuais do tipo “Não erre nunca mais”, como se pudéssemos comprar habilidades e competências nas prateleiras de um supermercado. Ledo engano, pois tais métodos – se é que podemos chamá-los assim – só ajudam quem os publica ou escreve, já que não é possível prescrever receitas de coerência, argumentação e análise, nem mesmo sobre erros formais, como os ortográficos, sem antes uma leitura crítica, que é resultado de anos de elaboração individual.
O segundo caminho é afundar-se nas velhas gramáticas de “certo ou errado”, chamadas normativas. Nossa vida escolar nos mostra que, na maioria das vezes, as conhecidas regras gramaticais de bom uso só acrescentam um tipo de verniz ao texto, e são equivalentes ao que, no convívio social, seriam as boas maneiras, não a verdadeira educação. Um texto pode ser gramática e ortograficamente impecável e não dizer nada. Isso sem contar com a tortura que sofre quem precise rememorar, sempre que escreve ou fala, as inúmeras e cheias de exceções regras gramaticais do português, em busca, quem sabe, da linguagem artificiosa do professor Astrogildo, o gramatiquês. Quem tenta falar mais “difícil” do que sabe pode cometer gafes impagáveis.
Nossa sociedade está, aos poucos, caminhando para desmascarar o gramatiquês em busca de coerência, clareza e persuasão. O exemplo mais representativo é o do atual presidente Lula, que conseguiu com sua argumentação convencer grande parte de nossa sociedade sem, contudo, abrir mão de sua linguagem despretensiosa. Claro que Lula, por sua origem e classe, fala diferente da norma culta – que normalmente é escrita – e comete erros gramaticais, como todos cometemos. Mas aplicar regras gramaticais à fala de um presidente é, no mínimo, impróprio. Com um discurso distanciado da linguagem mais acadêmica de seu antecessor, FHC, a linguagem de Lula é talvez, a julgar pelos resultados das urnas, mais adequada e clara que a de Fernando Henrique. Quem crê no contrário não encontraria nenhum argumento sólido para justificar seu ponto de vista, além dos precários manuais de “certo e errado” do segundo grau. Mostrar que você tem um conteúdo significativo a dizer vale mais do que dizer qualquer coisa da melhor forma possível. Em outras palavras, não há forma impecável que compense a ausência de conteúdo, não é mesmo?
Imagine que você vê numa vitrine um bombom de chocolate recheado com licor embrulhado num papel brilhante. Você o vê, parece ótimo, é irresistível. Você o compra. Ao provar, salivando, sente que o chocolate está duro e não tem licor, mas uma gosma branca. Decepcionante, uma fraude. Só tem embalagem. Numa reunião para apresentação de um novo produto da empresa, todos recebem um kit belíssimo, em uma pasta de gosto indiscutível. Mas o texto de apresentação, logo na primeira página, é decepcionante: uma série de clichês óbvios que não contêm erros, mas não dizem nada. Não tem licor, só embalagem.
Não há produto que resista ao vazio de conteúdo, por melhor que seja a embalagem (a forma). É possível pensar o conteúdo sem a forma da linguagem? Impossível, pois não há linguagem que não esteja expressa de alguma forma, seja ela oral, escrita, formal, informal, etc. Mais importante é notar se a linguagem é adequada à situação de comunicação, pois antes de interagirmos com quem falamos – ou escrevemos – nós pensamos através de palavras. E quanto mais complexo precisa ser nosso raciocínio mais precisamos de uma linguagem que dê conta de tal complexidade.
Você certamente não escreve e-mails para seu chefe com o mesmo conteúdo que para uma amigo. E a linguagem? Você a trata com diferença? Notar as diferenças, nem sempre sutis, de adequação é prova de sua sensibilidade lingüística, pré-requisito básico para a boa comunicação.
Se você domina, como falante, um conjunto de regras básicas de comunicação, não arrisque mais do que a sua segurança permite. Caso contrário, você pode cair em armadilhas que você mesmo armou. Já ouviu alguém dizer que fulano não tinha “chego” ainda? O uso de tal particípio segue um raciocínio que lingüisticamente é legítimo – talvez um dia seja aceito pela norma – mas causa má impressão, pois qualquer pessoa escolarizada deve ter percebido, ao longo dos anos e de várias leituras, que tal vocábulo ainda não faz parte da norma culta, e usá-lo em determinados contextos, principalmente no ambiente de trabalho, seria no mínimo arriscado.
Você já deve ter ouvido, pois pairam muitos mitos sobre qual seria a linguagem mais adequada e formal, por exemplo, e que seria melhor usar “possuir” no lugar de “ter”. Outra armadilha. Ao comentar sobre os possíveis defeitos de um relatório, ouvi um advogado dizer que um laudo, escrito por um técnico, “possuía problemas”. A confusão de uso entre ter, haver e possuir é comum no português, a ponto de ouvirmos citações hilárias como, por exemplo: “Fulano possui dois filhos”. No caso do advogado, um simples “tinha problemas” teria resolvido a questão com mais simplicidade e lógica. Corrigir-se mais do que o necessário é hipercorreção, portanto é melhor pisar em terreno conhecido para depois ir adiante. Na dúvida, seja simples. Também em termos de linguagem vale a máxima “menos é mais”.
Quando discutimos as dificuldades da nossa língua e o grau de complexidade delas nos deparamos com a inevitável questão: O que fazer para melhorar? Não há resposta genérica para tal pergunta, pois cada um tem uma forma de contato com a linguagem e a sensibilidade individual vai determinar qual é o caminho a ser seguido.
Leitura incessante? Nem todo bom leitor escreve bem, e nem todo bom escritor lê muito. Certamente, o cuidado na escolha das leituras vale mais do que a quantidade de textos que se lê. Prefere um best-seller a um clássico? Vá em frente, saboreie-o! O gosto só se forma experimentando todos os sabores. Contudo, o biscoito fino é só para quem sabe apreciá-lo. Por que não tentar?
Escrever, escrever sempre! O mecanismo da escrita nos leva a uma reflexão única sobre a linguagem, de modo que possamos escolher, pesar, medir, limar cada palavra para dizer aquilo que queremos. As palavras são nossos ingredientes, mas o prato fica sob nossa responsabilidade.
Consciência crítica. Se a linguagem e o pensamento são inseparáveis, o pensamento crítico sobre o mundo e sobre si mesmo é o ponto fundamental para a linguagem verdadeiramente aprimorada. Quem não critica o que o cerca e não expõe seu ponto de vista com argumentos para defendê-lo, não pode fazê-lo somente em um texto, artificialmente, mesmo que tenha todas as fórmulas. Coloque-se diante de cada situação, viva como se fosse real, enfim, invista na sua imaginação. Esse poder depende exclusivamente de você. Cresça e apareça com sua linguagem. Um grande poeta brasileiro, Murilo Mendes, disse certa vez: “Escrevo para me tornar visível”. Torne-se visível, mostre sua Língua!
Laila Vanetti é bacharel e mestre em lingüística pela Unicamp e diretora da Scritta, empresa especializada em cursos e consultoria em língua escrita.
Paulo Monteiro é bacharel em Letras pela Unicamp e docente na área de Língua Portuguesa.