Nos cenários de crise, como o que se repete no País, evidenciam-se de forma mais clara, dentre outras conseqüências e seqüelas econômicas, alguns problemas diretamente relacionados à paulatina transformação do trabalho, desde 20 anos atrás, provocada pela informatização e o aumento da competitividade na economia globalizada. Nos momentos em que o desemprego elevado, a retração dos mercados e perdas de clientes conspiram contra a saúde dos trabalhadores, é muito provável que se exacerbem as ocorrências de doenças profissionais, as chamadas LER (Lesões por Esforços Repetitivos) e DORT (Distúrbios Ósteo-musculares Relacionados ao Trabalho). Dores e outros problemas físicos, facilmente diagnosticados pela medicina e, portanto, aceitos hoje como doenças passíveis de faltas e licenças no trabalho, não devem ser analisados de forma isolada e tampouco dissociados de causas psicológicas. É muito possível que o trabalhador contemporâneo somatize, de distintas maneiras, problemas como a angústia diante da iminência de demissões, as pressões exercidas pelas chefias, a competição, a exigência de produtividade cada vez maior, horas extras, expedientes nos finais de semana e os grilhões na pró-atividade e criatividade impostos por modelos herméticos de gestão. Assim, tudo indica que as deficiências dos postos de trabalho, as dificuldades de uso de programas de computador, os teclados dos computadores e a imobilidade física durante o expediente não sejam os únicos “vírus” das epidemias de LER e DORT. Estudo realizado por mim e a professora Morgana Massetti, mestre em Psicologia Social, com funcionários de atendimento da área bancária e financeira, demonstra que o processo de informatização do setor de serviços propiciou significativa melhoria para os clientes e mais eficácia dos sistemas. No entanto, não teve um esperado impacto positivo para os profissionais, quanto às expectativas de melhoria das condições de trabalho, redução dos constrangimentos e reconhecimento do esforço e da competência dos trabalhadores. Esta frustração não pode ser generalizada, pois a satisfação e as condições e o conteúdo do trabalho dependem de numerosas outras variáveis, dentre elas a política de RH, fator importante, assim como as estratégias de produção e a maneira como são subdivididos os processos de produção e o trabalho. Porém, não é inexorável, amplo e irrestrito o conceito de que apenas a informática, a automação e a ergonomia sejam fatores de melhoria das condições de trabalho. Na pesquisa que realizamos, algumas causas de sofrimento no profissional devem ser consideradas com muita atenção por empresários, executivos, diretores e gerentes de RH: forte constrangimento definido por estratégias de gestão voltadas à compressão do tempo, para que cada cliente fosse atendido rapidamente; pressão das filas; demanda de produção muito variável, exigindo horas extras e expediente em finais de semana; defasagem crescente entre a expansão da demanda e a contratação de novos profissionais; demissões, seguidas do conseqüente crescimento do volume de trabalho dos “sobreviventes”; controle excessivo das ações e horários; forte competição entre colegas; conflitos constantes com a hierarquia, que se explicava, em parte, pelo papel dos supervisores de garantir ritmo e produtividade. Submetidos a essas condições, trabalhadores ainda jovens (de 20 a 30 anos), com bom nível intelectual, muitos deles no primeiro emprego, passaram precocemente a apresentar os sintomas das conhecidas LER/DORT. Dois terços dos efetivos tinham distúrbios relacionados ao trabalho, a maioria ligada ao sistema músculo-esquelético (desconforto, mal-estar e dores nas mãos, punho, cintura e região lombar). De 10 a 15% dos quadros estavam de licença médica devida as LER/DORT. Muito provavelmente, outro tanto deveria apresentar os mesmos sintomas em silêncio ou apenas registrar, introspectivamente ou no ambiente familiar, a angústia e insatisfação, muito mais difíceis de serem racionalmente diagnosticadas pela tradicional medicina do trabalho como causas passíveis de licenças. Numa conjuntura como a nacional, em que somente no Estado de São Paulo há mais de três milhões de desempregados, as empresas têm condições muito favoráveis para exercer pressão, exigir mais produtividade, reduzir quadros e impor condições de extrema rigidez aos seus funcionários. As organizações, ao adotarem uma estratégia mais agressiva e contundente nessa direção, podem ter como conseqüência uma exacerbação dos problemas e doenças como os descritos em nosso estudo. Por outro lado, ao ampliar a sinergia com os trabalhadores, compartilhar com eles a realidade dos problemas e dificuldades, propor um esforço conjunto de superação e reconhecer o empenho da equipe no aumento da produtividade e qualidade, uma empresa tem muito mais possibilidade de enfrentar a crise do que aquela que aproveita o caos para a afirmação da autoridade e controle sobre seus funcionários. Tradicional axioma da economia diz que na crise surgem as oportunidades. Isto também é verdadeiro nas relações entre as empresas e os trabalhadores. Laerte Idal Sznelwar é médico ergonomista da Universidade de São Paulo – Escola Politécnica, Departamento de Engenharia de Produção.