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Direito de arrependimento, comércio eletrônico e plataformas digitais: notas para um debate

Para evitar o exercício abusivo e disfuncional do direito de arrependimento, os fornecedores de bens e serviços digitais podem ter a tecnologia a seu favor

Autores: Marcela Joelsons, Nathália Munhoz e Rodrigo Ustárroz Cantali

O mundo está em constante transformação e, no Brasil, a questão ganha contornos particulares. Em 1990, a internet e o e-commerce não eram tão difundidos quanto hoje; o celular chegou ao Brasil e o acesso aos computadores ainda era incipiente. Para além disso, nas décadas de 1980 e de 1990, as empresas ainda voltavam suas políticas e estratégias de venda mais fortemente aos estabelecimentos físicos e a práticas como catálogos e venda de porta em porta ou por telefone. Expressões hoje comumente utilizadas, como marketplace, plataformas digitais e mercado de dois lados, eram pouco ou nada utilizadas.

A globalização e a digitalização impactam diretamente essa transformação. Ao longo dos anos, o que se vê é uma integração mais próxima de economias, culturas, sistemas; é uma remoção de barreiras em trocas, transações, interações e comunicações. Houve o surgimento de uma verdadeira arena internacional: pessoas em qualquer lugar do mundo podem se vincular, independentemente de barreiras geográficas, políticas ou temporais.

Não foi por acaso ou coincidência que se fez referência, acima, ao ano de 1990: em 11 de setembro de 1990, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC), lei que revolucionou o mercado ao buscar estabelecer uma maior proteção ao consumidor, sujeito considerado como “vulnerável” na relação de consumo. Uma das medidas que se buscou implementar foi o chamado “direito de arrependimento”, que dá ao cliente o direito de desistir da compra (de produto ou serviço) no prazo de sete dias, “sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou em domicílio”.

Essa regra foi estabelecida com o objetivo de proteger o consumidor quanto a abordagens mais agressivas, derivadas de práticas e técnicas de venda incisivas que demandavam uma decisão impulsiva, sem o discernimento e tempo necessários para reflexão acerca dos atributos daquilo que se estava adquirindo. Os tempos mudaram. A legislação, (ainda) não. Atualmente, cada vez mais os produtos e serviços são adquiridos pela internet, via marketplaces, e o consumidor tem a informação que precisa para a contratação. Aliás, acerca da contratação no comércio eletrônico, vigora no Brasil, desde 2013, o Decreto n.º 7.962, que, dentre outros aspectos, reitera a importância de o consumidor ter acesso a informações claras acerca do produto ou serviço, bem como para o exercício do direito de arrependimento.

Nesse sentido, o debate precisa levar em consideração, ao menos, dois importantes fatores: a discussão acerca da aplicação de um dispositivo de lei pensado para a década de 1990 a uma realidade hoje completamente diferente – que envolve também o fornecimento de bens e serviços digitais; e a reflexão acerca de soluções e alternativas que, diante do lento avanço legislativo, permitam não apenas que o consumidor tenha condições adequadas de análise, mas também que evitem a imputação de práticas abusivas a fornecedores, além de evitar o exercício abusivo e disfuncional do direito de arrependimento pelo consumidor.

Para evitar o exercício abusivo e disfuncional do direito de arrependimento, os fornecedores de bens e serviços digitais podem ter a tecnologia a seu favor. Pense-se na aquisição de um livro digital, que precisa ser lido em uma plataforma que registra a quantidade de acessos, de tempo despendido, de páginas acessadas digitalmente. Esses registros podem ser colhidos e podem demonstrar se o consumidor efetivamente fruiu o bem/serviço ou não. Nesses casos, é necessário garantir de forma prévia e clara a informação ao consumidor acerca das hipóteses em que poderá ou não haver o exercício do direito de arrependimento. A utilização dessas ferramentas tecnológicas pode contribuir para a manutenção da intenção da regra – especialmente diante da ausência de lei expressa ou, no caso brasileiro, de lei compatível com a atual realidade da contratação eletrônica/digital.

O direito ao arrependimento deve ser respeitado pelas empresas, que devem utilizar seus esforços para permitir que o consumidor possa exercê-lo adequadamente. Da mesma forma, as empresas podem, com o auxílio da tecnologia, contribuir com meios que evitem a propagação de condutas oportunistas. Não se pode pensar o Direito do Consumidor como um Direito destinado a atender somente os interesses dos consumidores em relação a fornecedores: é preciso harmonizar os interesses dos participantes, de modo a não inviabilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Marcela Joelsons, Nathália Munhoz e Rodrigo Ustárroz Cantali são advogados da área de Consumidor e Product Liability do Souto Correa Advogados.

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