As marcas de luxo tem o desafio de tornar-se acessível o suficiente para conquistar o aspirante, sem perder a aura de exclusividade que justifica os preços premium
Autora: Tamara Lorenzoni
O universo do luxo sempre evocou imagens de exclusividade – bolsas de preço inalcançável desfilando em calçadas da Quinta Avenida, relógios suíços adornando punhos de magnatas. Surpreendentemente, porém, a força motriz por trás do consumo global de luxo hoje não são os bilionários, mas sim a classe média. Estimativas indicam que cerca de 70–75% das vendas globais de produtos de luxo na categoria de moda, beleza e acessórios provêm de lares de renda média. Esse dado, respaldado por análises da Bain & Company, expõe um paradoxo fascinante: o luxo em certos setores se tornou, em grande medida, um fenômeno de massa aspiracional.
Quem compõe essa classe média consumidora de luxo? Longe do estereótipo do milionário entediado, estamos falando de profissionais liberais, executivos emergentes, duplas de renda familiar – pessoas com renda confortável, mas não estratosférica, geralmente na faixa de US$ 40 mil a US$ 150 mil anuais. Em países desenvolvidos, isso equivale à classe média alta, aqueles com poder de compra para além do básico, porém ainda conscientes do orçamento. Esses consumidores veem nos itens de luxo um investimento simbólico: estão dispostos a economizar em outras áreas para adquirir uma bolsa da Chanel ou um terno Armani, encarando-os como “peças de investimento” em estilo e status.
Essa dinâmica reflete o que chamamos de “luxo aspiracional” ou “mass luxury”. Não se trata de necessidade, mas de desejo – uma busca por diferenciação e realização pessoal através de bens de alta gama. Psicologicamente, o apelo do luxo está na aspiração: ao comprar um item de marca famosa, o consumidor médio sente que obtém uma fatia do estilo de vida dos muito ricos. Quando você adquire uma bolsa de luxo, está se pagando para além do produto, ne também pelo que ele representa como sucesso, acesso, status, e pertencimento. A Harvard Business Review já observava esse fenômeno desde os anos 2000: consumidores de renda média “fazem um trade-up”, pagando um ágio significativo por produtos premium que lhes tragam qualidade superior e satisfação emocional. Em suma, o luxo funciona como um símbolo de conquista – cada sacola de compras carrega um sentimento de vitória pessoal.
O resultado desse anseio difundido foi uma expansão do luxo nas últimas décadas. Historicamente, as marcas de alta-costura atendiam a uma clientela restrita – aristocratas, magnatas da indústria, celebridades. Mas a partir dos anos 1990 e 2000, com a expansão econômica e o crescimento da renda média global, especialmente em mercados emergentes, o perfil do consumidor de luxo se diversificou radicalmente. Milhões de novos consumidores na Ásia, Leste Europeu, América Latina e Oriente Médio passaram a ter acesso (ou pelo menos apetite) por produtos de luxo.
Para se ter ideia, o consumidor chinês tornou-se protagonista: nos últimos cinco anos, os chineses responderam por cerca de 20–25% das vendas mundiais de bens de luxo. Incluindo suas compras internacionais, estimativas recentes chegam a apontar que quase um terço do mercado global de luxo é alimentado por compradores chineses – em grande parte membros de uma nova classe média aspiracional. Esse poder de consumo emergente transformou a geografia do luxo: hoje, uma marca de moda ou relógios suíços mira tanto o cliente de Xangai ou Dubai quanto o de Paris ou Nova York.
Diante dessa base ampliada, as estratégias das marcas de luxo precisaram evoluir. O desafio: tornar-se acessível o suficiente para conquistar o aspirante, sem perder a aura de exclusividade que justifica os preços premium. Muitas marcas de luxo adotaram a tática dos “produtos de entrada” – itens de tíquete relativamente baixo dentro de seu portfólio. Pense em chaveiros, carteiras, perfumes e cosméticos de marcas icônicas: são produtos com preços iniciando em “três dígitos” (em dólares) que servem como porta de entrada para novos consumidores. De fato, itens menores e edições limitadas mais acessíveis tornaram-se fundamentais para capturar o público aspiracional, mesclando atingibilidade com prestígio. Paralelamente, houve investimento em experiências de marca: eventos, conteúdos digitais e atendimento personalizado que fazem o cliente “comum” se sentir parte do clube do luxo. Programas de fidelidade exclusivos, personal shoppers virtuais, colaborações com artistas – tudo para cultivar um vínculo emocional e prolongar a jornada aspiracional desse cliente, mantendo-o engajado mesmo após a compra dos sonhos.
E engajamento não falta. Curiosamente, a classe média entrega às marcas um tipo de lealdade que os ultra-ricos raramente oferecem. Um cliente bilionário pode comprar joias e bolsas sem nem olhar o preço, mas também pode facilmente migrar de marca conforme o capricho – afinal, para ele, não há sacrifício envolvido. Já o consumidor aspiracional investe tempo e dinheiro suado em cada aquisição; com isso, cria-se uma conexão afetiva potente com a marca escolhida. Estudos de mercado mostram que clientes de renda média tendem a ser compradores recorrentes, acompanhando lançamentos, economizando para futuras compras, até entrando em listas de espera por produtos esgotados. Essa devoção nasce porque, para eles, não é “só mais uma bolsa”, e sim um troféu pessoal. Nas palavras de Claudia D’Arpizio, especialista da Bain & Company, o consumidor aspiracional enxerga o luxo como um marco de realização – “um grande número dos clientes perdidos em 2024 eram aspirantes desconectando-se do luxo devido a aumentos de preço e contexto econômico desafiador”, explicou ela ao comentar a recente retração do setor. Ou seja, a mesma paixão que os leva às lojas pode arrefecer quando as condições apertam.
Chegamos, então, a um ponto crítico: o romance entre a classe média e o luxo foi abalado pela economia em 2024. Após anos de crescimento contínuo, o mercado de bens de luxo pessoais contraiu -2% em 2024, marcando a primeira queda substancial desde a Grande Recessão de 2008. O culpado principal? Um consumidor aspiracional fatigado. Com a inflação corroendo o rendimento disponível e os custos de vida em alta, muitos lares de classe média alta reavaliaram suas prioridades, cortando gastos com artigos de luxo considerados dispensáveis. Na América do Norte, as vendas de luxo chegaram a cair 10% no terceiro trimestre de 2023, reflexo da ansiedade econômica. Na Europa e em outros mercados maduros, observou-se padrão semelhante. Já na China, emergiu até um fenômeno de “luxo envergonhado”, segundo reportagens, em que consumidores passaram a evitar ostentação evidente, optando por produtos mais discretos e menos logomarcados para não chamar atenção em meio a sensibilidades econômicas e sociais. Em suma, o grande exército de aspirantes começou a pisar no freio.
As consequências desse freio são palpáveis. Estima-se que aproximadamente 50 milhões de consumidores saíram do mercado de luxo em 2024 – um êxodo significativo, composto majoritariamente por compradores ocasionais de renda média que adiaram compras. Esse esvaziamento da base atingiu em cheio algumas marcas que vinham desfrutando do “boom” inclusivo. Não por acaso, há quem diga que a bolha do luxo estourou – uma referência ao ajuste de contas de um mercado que talvez tenha se apoiado demais em consumidores sensíveis à economia.
Para as marcas de luxo, fica uma lição estratégica importante. Nos últimos anos, muitas apoiaram seu crescimento justamente nessa expansão de base, elevando preços ano após ano e colhendo margens gordas graças à disposição da classe média de “pagar para sonhar”. Contudo, tal movimento tem limites. A expansão desenfreada pode comprometer a proposta de valor central do luxo – exclusividade, criatividade e qualidade excepcionais – ao mesmo tempo em que torna a marca dependente de um público volátil. Em outras palavras, ao buscar escala, certas marcas arriscaram diluir a mística que as tornava desejáveis. Já existem sinais de alerta: clientes tradicionais de altíssima renda vêm reclamando da perda de exclusividade, notando que produtos antes raros agora estão por toda parte. Esse descontentamento, somado à retração dos aspirantes em tempos difíceis, sugere que o equilíbrio entre prestígio e popularidade é mais delicado do que nunca.
Olhando adiante, o cenário ainda reserva oportunidades brilhantes – mas exige ajustes. Projeções indicam que mercados emergentes adicionarão mais de 50 milhões de novos consumidores de luxo de classe média alta até 2030, especialmente na Ásia do Sul, Sudeste Asiático, África e América Latina. Ou seja, o pool de potenciais clientes aspiracionais continuará a crescer em longo prazo, alimentando a esperança de retomada sólida para o setor de luxo. Contudo, colher esses frutos implica compreender as lições recentes. Marcas que quiserem prosperar precisarão redefinir suas estratégias: não podem mais contar apenas com aumentos anuais de preço ou com o apelo automático do logo. Será fundamental reativar a criatividade e a narrativa de marca – oferecer um diferencial autêntico que justifique o gasto para um consumidor cada vez mais criterioso. Além disso, segundo analistas da McKinsey, será necessário resgatar a proposta de valor original do luxo, investindo em qualidade incomparável, em atendimento verdadeiramente personalizado e em experiências que transcendam o produto físico. Somente assim o cliente aspiracional continuará convencido de que vale a pena “trocar de categoria” e pagar um ágio pelo que lhe é oferecido.
Em paralelo, as marcas não podem se dar ao luxo de ignorar seus melhores clientes tradicionais – os endinheirados de altíssima renda. Paradoxalmente, nos últimos dois anos esses clientes aumentaram sua fatia no consumo total de luxo, mesmo que numericamente sejam poucos. Em tempos de vacas magras, foram eles que sustentaram muitas maisons, ao mesmo tempo em que reclamavam da falta de exclusividade. Assim, o setor precisa encontrar uma fórmula no paradoxo de “incluir mantendo a exclusividade”. Algumas estratégias possíveis incluem: séries ultra-limitadas só acessíveis a VIPs, serviços sob medida realmente únicos e uma comunicação segmentada que fale diferente com o público aspiracional versus o público elite. Será um malabarismo interessante: continuar seduzindo a classe média (que dá volume e buzz) sem afastar a elite (que garante estabilidade e alto luxo).
No fim das contas, o mercado de luxo em 2025 está se vendo diante de um paradoxo provocativo. De um lado, nunca foi tão diverso, e impulsionado pela paixão de milhões – o que indica força e relevância cultural muito além dos salões aristocráticos. Por outro lado, essa mesma diversidade impõe dilemas sobre a perda do mistério e da exclusividade que definem o luxo. A classe média global mostrou seu poder: elevou o luxo a um patamar antes inimaginável, mas também demonstrou que pode tirá-lo rapidamente do pedestal quando pressionada. Resta saber como as marcas navegarão essa linha tênue. O luxo pode se “democratizar” sem se banalizar? Conseguirá continuar cobrando preços altíssimos de uma base ampla, mantendo todos satisfeitos – aspirantes e afluentes? A resposta vai moldar a próxima década do setor.
Por ora, o que parece claro é que o luxo do futuro será co-criado por esses consumidores aspiracionais. Eles demandarão mais das marcas – mais propósito, mais inovação, mais valor tangível além do logo – em troca de sua lealdade (e de seu suado dinheiro). Já os empreendedores e gestores de marcas premium deverão equilibrar razão e emoção em suas estratégias: entregar inclusão sem perder a aura, falar a língua da nova classe média sem baratear a marca. O luxo continuará sendo um jogo de exclusividade, mas o tabuleiro ampliou.
Tamara Lorenzoni é mestre em gestão de marcas de luxo pela Domus Academy Milano.