Em 1901, um dos primeiros veículos de duas rodas movido a gasolina foi demonstrado na Milwaukee´s Grand Avenue, nos Estados Unidos. Não sabemos se William S. Harley ou os irmãos Arthur e Walter Davidson estavam presentes, mas foi dali que os três amigos tiraram a ideia de desenvolverem a própria motocicleta. Concluída dois anos mais tarde, em 1903, ela foi a primeira a ser produzida pela marca, que se tornou lenda do motociclismo – e sinônimo de estilo de vida. Mas se hoje ela está consolidada como ícone, muito dessa estrada se deve à percepção que construiu junto aos clientes. Mais que vender produtos, a Harley-Davidson decidiu vender customer experience. “Temos um posicionamento, uma visão e uma missão bem clara que é realizar o sonho dos clientes. Não é atender as necessidades básicas que ele já tem, mas seus sonhos. O que mais ele precisa para ser feliz?”, pondera Longino Morawski, presidente da companhia no Brasil.
O resultado dessa cultura está no HOG, Harley Owners Group, grupo de apaixonados pela marca, que conta com um milhão de membros no mundo. Ou na própria pele do cliente, já que é a marca mais tatuada mundialmente, só perdendo para o nome da mãe. “Isso reforça o relacionamento emocional com o cliente e vice-versa. Então, quando falamos em cliente, não é só discurso.” Tanto que na prática isso se reflete em um forte trabalho com seus interlocutores, com quem irá representá-los, que são as concessionárias. “Não basta querer e apresentar esse posicionamento, mas preparar muito bem quem irá entregar isso para os clientes e medir isso para avaliar se está sendo entregue de forma correta”, comenta o presidente, acrescentando ainda mais dois pilares importantes: o pós-venda e a realização de encontros para os fãs da marca. Em entrevista exclusiva à Revista ClienteSA, Morawski esclarece de que forma a Harley-Davidson vem trabalhando o conceito de customer experience, fazendo dela mais do que uma simples marca de motocicletas.
Como o Sr. construiu sua trajetória?
Toda minha carreira foi em cima de quatro ou duas rodas. Sou engenheiro eletrônico de formação. Comecei atuando na parte técnica da GM em 1993, mas depois de certo tempo fui para administração. Nesse momento, decidi fazer uma pós-graduação em marketing para complementar minha formação como executivo na área comercial. Depois de nove anos, fui chamado para liderar a reestruturação da área comercial da Toyota, em 2002. Lá permaneci por oito anos como responsável da área comercial, marketing, desenvolvimento da rede de concessionárias, treinamento – áreas com foco no cliente e em vendas. Como já estava em uma função mais genérica, de gestor, decidi fazer um MBA de administração. Até que, em 2010, a Harley-Davidson me convidou para assumir os negócios no Brasil e montar sua subsidiária.
Como foi esse período?
Na época, tínhamos um representante exclusivo no Brasil, com apenas três funcionários da Harley-Davidson. A minha chegada tinha como intuito montar a subsidiária. Assim, fui o número um da nova organização. Foi nesse momento que realmente iniciamos tudo, com a estruturação do escritório e das concessionárias, contratação de executivos e negociação com o antigo distribuidor. Em 8 de fevereiro, de 2011, começamos, então, o novo negócio, e de fato a Harley-Davidson veio para o Brasil.
De que forma ter contato com o modelo de gestão americano e japonês acrescentou na sua formação?
Tenho sorte, pois todas as fases da minha carreira profissional se complementam. Na GM foi uma grande experiência, pois existe uma cultura americana bem abrasileirada, já que está há muitos anos no Brasil e grande parte dos executivos são brasileiros. Já na Toyota encontrei uma cultura japonesa muito voltada a processos e eficiência. Com a Harley-Davidson voltei para uma empresa americana. Mas, dessa vez, com uma cultura americana de fato, principalmente do meio oeste dos EUA – Wisconsin, bem voltada a resultados e estratégias, além de ser orientada ao cliente.
Como isso está presente na companhia?
O nosso posicionamento é “We Fulfill Dreams of Personal Freedom”, que quer dizer: “Nós não vendemos produtos. Realizamos sonhos”. Ou seja, nossa missão é realizar o sonho dos clientes. E a empresa tem isso muito forte no seu pensar e agir. Vendemos de uma maneira muito diferente do mercado, se posicionando como um produto Premium. E isso é resultado do que construímos no decorrer de mais de cem anos. Não somos vendemos motocicletas, vendemos Harley-Davidson. Nossa moto não é duas rodas e um motor. Ela é percebida como algo que tem alma própria, e transmite esse valor adicional. Isso tem muito a ver com o cliente, pois uma empresa só cria uma relação forte com o consumidor, se este se apaixonar pela marca, vendo como parte dele. Isso acontece na Harley Davidson. Inclusive, existe o HOG, Harley Owners Group, que é o maior grupo de apaixonados pela marca, com um milhão de membros no mundo. Outro dado curioso, que reflete essa percepção, é o fato da marca ser tatuada por milhares de pessoas mundialmente. Só perde para o nome da mãe da pessoa. Isso reforça o relacionamento emocional com o cliente e vice-versa. Então, quando fala em cliente, não é só discurso.
Como foi construída essa percepção?
No início, era mais uma motocicleta. Depois, nas décadas de 50 e 60, ficou muito ligada ao rock’n’roll e à liberdade. Logo depois, vieram os filmes, hoje considerados históricos, como Easy Rider e Rota 66. Tudo isso ajudou a criar um mito. Ela passou a representar o sonho de muitas pessoas. Esse momento foi decisivo. O segundo momento foi a recompra da marca, junto com a criação do HOG. Houve a preocupação de entregar ao cliente uma experiência fantástica. Mais que vender um produto, vender customer experience.
Hoje, quantos brasileiros participam do HOG?
Cerca de 15 mil, que estão espalhados por todas as concessionárias. Cada concessionária leva o nome de chapter, pois também fazem parte do HOG. No Brasil, são 18 chapters. Nessas concessionárias são organizadas diversas ações, como o café da manhã oferecido aos clientes, que acontece todo sábado. É um grande encontro. E, depois, alguns saem para fazer passeios. Nossos clientes têm as mesmas afinidades, gostam de conviver, viajam juntos, pilotam juntos. Tanto que, dentre os valores da Harley-Davidson, existe o bound, ou seja, companheirismo. Por isso que realizamos muitos eventos. O café da manhã é somente um deles. Há pouco tempo, em São Paulo, organizamos o Harley Days para 20 mil pessoas, não somente membros do HOG, mas clientes em geral, pessoas apaixonadas pelo mundo Harley-Davidson.
Essa é a base da estratégia?
Também, mas não ficamos nisso. Quando começamos a montar a operação brasileira, definimos quais seriam os pilares para sustentar a marca no país. Fechamos em três. Um deles é a realização de eventos. Outro pilar é o pós-venda eficiente, pois se vendi um produto para alguém, preciso respeitá-lo, oferecendo assistência técnica de qualidade e provendo peças. É nossa obrigação. Por isso, trouxemos a central de peças de Manaus para São Paulo e montamos um centro de treinamento high tech idêntico ao original em Milwaukee. Toda semana temos profissionais das concessionárias sendo treinados. Queremos que desde a ponta seja vendida a experiência. O terceiro pilar é uma rede de concessionárias forte, pois é o local onde o cliente mais se relaciona com a marca. Assim, investimos no treinamento dos vendedores da concessionária, pois é lá que acontecem os grandes momentos do relacionamento entre cliente e marca. Um dos programas internos que estamos trabalhando bastante é o HDCX – Harley Davidson Customer Experience, onde temos vários processos de treinamento a fim de que ofereçam a melhor experiência ao cliente em cada momento dentro da concessionária. Temos, inclusive, o que chamamos de índice de customer experience por concessionário, onde verificamos onde estão acertando e errando. A partir dele, fazemos visitas e prestamos uma consultoria. Existe muito trabalho por trás do customer experience. Não basta só dar treinamento, mas tenho que ter indicadores de performance para medir quais aspectos estão funcionando. Cobramos muito da concessionária. Ela é parte do grupo Harley-Davidson. Também tem que querer proporcionar uma experiência fantástica para o cliente.
O sonho não tem preço.
Não tem preço. O que não queremos é ser commodity, pois ai existe uma guerra de preço. Adicionamos valor e vendemos a experiência. É claro que deve ter um esforço de varejo. Não dá para ficar parado esperando o cliente. Precisa existir uma comunicação. Preciso fazer campanhas para atrair novos clientes. Mostrar o que eu sou. Não nos posicionamos como o produto mais barato, mas também não nos apresentamos como o mais caro. Nosso posicionamento é de alguém que vende experiência.
E como trazem o cliente?
De várias maneiras. O São Paulo Harley Days é uma delas. Tínhamos uma área do HOG, mas do público de 20 mil pessoas, posso dizer que mais da metade não era cliente Harley-Davidson. São pessoas apaixonadas por esse negócio de rock’n’roll, liberdade e todos os outros sentimentos que envolvem a marca. Esse é o primeiro contato com a marca. Talvez compre uma camiseta e comece ali um relacionamento.
Qual o resultado disso no Brasil?
Em 2010, antes de retomarmos o negócio no Brasil, foram vendidas 4.056 unidades. Em 2011, com abertura de concessionárias, foram vendidas 4.300 motos, mesmo sem operar o ano todo. Em 2012, o número subiu para 6.800. Em 2013, 6.700. E, esse ano, até agora, foram vendidas 5.669, mas se o volume continuar nessa casa, devemos chegar perto das 8.000 unidades. É claro que esse é um momento de precaução e não sabemos se vamos crescer no ano que vem, mas se mantivermos os níveis de venda já estamos satisfeitos. Hoje, o Brasil representa 65% do mercado latinoamericano e estamos entre os dez maiores mercados do mundo.