Datas comemorativas sempre inspiram alguma reflexão. Não é diferente quando se trata do Dia do Consumidor, comemorado em 15 de março. Nesse caso, em particular, são muitas as perguntas. No ano em que o nosso Código de Defesa do Consumidor, considerado um dos mais bem elaborados do mundo, completa 15 anos, o brasileiro já atingiu o nível de consciência ideal, em relação aos direitos que tem? E as empresas que lhe fornecem produtos e serviços? Como é que elas vêm se comportando? Até que ponto o discurso de venda que explora a qualidade é verdadeiro? A promessa de “foco no cliente” tem sido honrada ou não passa de retórica?
“Infelizmente, no Brasil, ainda estamos muito longe da excelência no que diz respeito a atendimento a clientes. Justiça seja feita, as indústrias de modo geral, sobretudo a de alimentos, estão chegando lá. Mas as empresas de serviços públicos vão de mal a pior”, responde, com base em pesquisas, Gustavo Marrone, diretor-executivo da Fundação Procon, no País, uma das instituições que mais se destacam pela defesa dos direitos do consumidor.
Ainda com base nas estatísticas, Gustavo considera que não escapa ninguém. É enorme, ele diz, o número de queixas contra as operadoras de telecomunicações, energia elétrica e saneamento, na maioria relativas à cobrança de serviços que, de fato, não foram consumidos. Quanto às empresas de telefonia celular, em especial, boa parte das reclamações, além de faturas erradas, diz respeito à clonagem de números, o que também vai dar na tarifação indevida.
O diretor da Fundação Procon considera que a privatização, instaurada com a proposta de prover mais e melhores servicos pelo menos preço, só fez piorar as coisas. “Sobretudo no caso dos serviços de telefonia, em primeiro lugar no ranking das reclamações, nós saímos do monopólio estatal para o monopólio privado regionalizado. Não há concorrência pra valer, o que deixa as teleoperadoras à vontade para fazerem o que querem e bem entendem”, condena.
Perversidade – Marrone também chama a atenção para precariedade dos serviços prestados pelas bandeiras de cartão de crédito, acusadas, principalmente, de cobrarem juros extorsivos. Mas atira, em especial, nos planos de saúde. “Numericamente, eles não estão no topo da lista, mas o fato de figurarem no ranking, por si só, já é muito grave. Afinal, em tese, estamos falando de empresas que não lidam com um consumidor qualquer. Nessa relação de consumo, o que está em jogo é a própria v ida das pessoas”, lembra Marrone.
No caso dos serviços públicos, segundo ele, a perversidade chega às raias do absurdo, na medida em que se nega ao consumidor até mesmo o direito de reclamar. “Nem todo o avanço tecnológico conseguiu garantir ao consumidor uma tribuna. Nas centrais de atendimento a clientes, o tempo de espera se estende por minutos e as URAs, Unidades de Resposta Audível, implantadas para prover o auto-atendimento, com uma árvore de opções que não tem fim, irritam qualquer um. Pior, quando cai a linha, além de ter de entrar na longa fila outra vez, a pessoa é forçada a repetir a história. Um absurdo”, protesta.
Na telefonia, tanto quanto na energia elétrica, saneamento e saúde privada -, Gustavo atribui a falta de qualidade à omissão das respectivas agências reguladoras. Na opinião dele, elas deviam assumir atitude fiscalizadora e agir de maneira enérgica nos casos de desrespeito aos direito dos usuários. Mas a crítica mais contundente vai para a entidade que deveria fiscalizar os planos de saúde. “A Agência Nacional de Saúde, simplesmente, não funciona. A prova disso é o caso Interclínicas, que faliu, prejudicando centenas de pessoas. A empresa já dava sinais de mau funcionamento havia muito tempo. Mas a ANS não tomou qualquer providência”, condena o diretor da Fundação Procon.
A bronca é livre – Menos mau, o consumidor brasileiro já não se parece em nada com o de 15 anos atrás. “Nós aprendemos a reclamar e a exigir nossos direitos”, avalia Gustavo, citando, uma vez mais, as estatísticas do Procon. Os números de 2004 ainda não estão fechados. Mas, segundo ele, não devem trazer grandes modificações, se comparados aos de 2003. Dois anos atrás, a quantidade de atendimentos realizados apenas em uma das 27 delegacias estaduais do Procon, Brasil afora – a de São Paulo -, foi de 368.194, contra 376.553, em 2002. Daquele total, 118.478 dizem respeito a denúncias contra empresas de serviços público, outras 65.027 se referem a agentes financeiros (cartões de crédito, bancos e financeiras) e 49.768 têm a ver com o mau atendimento prestado pelas indústrias de bens de consumo. Os planos de saúde, sempre subindo no ranking, saíram de um total de 14.366 reclamações, em 2002, para 17.860 no ano seguinte e levam jeito de se superarem outra vez em 2005.
Estatísticas divulgadas no começo do ano passado pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor confirmam a triste liderança das empresas de telefonia. Em resposta à pergunta formulada pelo instituto no portal www.idec.org.br, 62% de 600 pessoas disseram que as teleoperadoras, entre as empresas de serviços públicos, são as mais problemáticas. Os planos de saúde vêm em segundo lugar, com 12%, e os serviços água, energia e educação surgem, tecnicamente empatados, na terceira posição, com 5% dos votos.
O presidente do IBRC (Instituto Brasileiro de Relações com Clientes), Alexandre Diogo ( leia artigo nesta edição), acha que o Brasil, em termos de relações de consumo não está suficientemente maduro, embora se encontre a meio caminho disso. O nível de tolerância, por parte das autoridades, segundo ele, ainda é muito alto. “Mas já demos um belo passo à frente, porque o consumidor, dia a dia, se torna mais exigente. Se ele ainda não reclama tanto quanto devia, em caso de abuso, pelo menos, sabe usar a arma que tem: abandona a marca.
Diogo observa que as empresas gastam rios de dinheiro em pesquisa, mas ainda não atentaram para a forma como o consumidor expressa sua desaprovação quando se sente desrespeitado. “Na maioria das vezes, quando reclama, é porque pretende ficar. Quem não quer mais saber da marca cai fora. Sem aviso. Portanto, é melhor ficar atento”, aconselha o consultor.
Tecnologia só não basta – Anna Zappa, diretora da Plusoft, empresa que fornece soluções e consultoria em marketing de relacionamento, concorda com o diretor da Fundação Procon, quando ele diz que a indústria de bens de consumo está mais bem preparada para atender aos clientes do que a de serviços. “É natural. Ela saiu na frente e lida com produtos que, simplesmente, não podem apresentar defeito, a começar pelos alimentos. Mas não é só isso. Na indústria, qualidade é algo tangível, objetivo, o que não acontece no setor de serviços, cujo conceito de excelência, pela falta de métricas confiáveis, ainda é por demais subjetivo”, compara Anna.
A executiva também concorda com o que diz Marrone, sobre a incapacidade das empresas, de usar a tecnologia para resolver problemas cruciais no que diz respeito a relações de consumo. Mas isso, segundo Anna, não acontece por falta de recursos. Pelo contrário, as soluções hoje disponíveis no mercado permitem captar informações completas acerca dos clientes nas fases de pré-venda, venda e pós-venda. Com elas é possível medir o grau de satisfação dos clientes no presente e, ainda, prever e antecipar- se às mudanças de comportamento.
O que acontece, segundo ela, é que a maioria ainda não sabe como transformar informação em conhecimento capaz de dar respaldo às ações de marketing. “As soluções de software de última geração permitem que as empresas surpreendam o cliente, indo muito além do que ele quer”, garante Anna, lembrando, porém que tecnologia só não basta. “Bom atendimento é uma questão de atitude, de cultura”, afirma a executiva.
Confiança elevada, apesar dos pesares
Apesar da política de juros altos, crédito caro, queda na renda e o fantasma do desemprego, o consumidor não deixou de ir às compras, aquecendo a economia
Dois mil e quatro foi o ano em que a confiança do consumidor da Região Metropolitana de São Paulo se manteve elevada. Com a economia em expansão, ele aproveitou para ir às compras e, conseqüentemente, aquecer o comércio. Em todo o Brasil, de janeiro a dezembro, a receita nominal daquele setor cresceu 12,97% enquanto o volume de vendas subiu 9,25%, com relação a 2003, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Tais resultados influenciaram, também de maneira positiva, o Índice de Confiança do Consumidor (ICC), apurado mensalmente desde 1994 pela Fecomercio (Federação do Comércio do Estado de São Paulo), em parceria com a FGV (Fundação Getúlio Vargas). O estudo estatístico apurou que, no decorrer do ano passado, a confiança do consumidor esteve sempre em alta: ele comprou mais.
O ICC varia de 0 a 200 pontos, sendo que 107 pontos, por exemplo, significa que a população revela grau de otimismo 7% superior ao nível de indiferença, menos de cem pontos. Na pesquisa, a Fecomercio e a FGV entrevistaram cerca de 2.100 consumidores, segmentados por idade, sexo e renda. Logo na primeira coleta do ano, em janeiro, o ICC registrou 127,29 pontos ( veja o gráfico), melhor resultado desde 1999; ou seja, 7,4% maior em relação a 2003.
Sem surpresas – No ano passado, abril foi o mês de pior desempenho (109,31 pontos), comportamento que o economista Altamiro Carvalho atribui ao salário mínimo estagnado, à queda de renda e ao nível de desemprego, que subia. “Mesmo assim, estava dentro da faixa de otimismo. A última vez em que o ICC ficou abaixo dos cem pontos, na faixa do pessimismo, foi em agosto de 2002, época em que começava a esquentar a campanha para a eleição presidencial e havia pressão cambial”, lembra o economista. A redução do nível de consumo em abril foi, porém, amplamente compensada no mês seguinte. Nas comemorações do Dia das Mães, o consumidor retomou o otimismo, elevando o índice para 124,84 pontos.
A partir de setembro, exatamente no mês em que o Copom (Comitê de Política Monetária) deu início à política de elevação da taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), o ICC começou e apresentar os melhores desempenhos do ano (128,81 pontos), com pico de 145,64 pontos em novembro – melhor desempenho do ano – para fechar dezembro com 141, 07 pontos.
“De uma forma geral, 2004 foi um ano proveitoso: à redução na taxa de desemprego somou-se a expansão do crédito em escala sem precedentes, o que facilitou o acesso do brasileiro em geral aos bens duráveis, mesmo sem aumento da renda”, analisa o economista. Quanto a 2005, ele não está muito otimista. Carvalho considera que, com os juros em 18,75%, podendo aumentar ainda mais, o custo do crédito tende a aumentar, agravando-se a situação ante o aumento da carga tributária que se anuncia, provavelmente, com efeitos negativos sobre o comércio. “Também não esperem índices expressivos de aumento do poder de compras: o consumidor já começou o ano endividado”, prenuncia o economista, para quem a Selic ajuda a arrefecer o ânimo do consumidor.