Desde a edição do Código de Defesa do Consumidor, 14 anos atrás, no Brasil, são muitas conquistas no que diz respeito a relações de consumo. É inegável, por parte dele e de algumas empresas, o ganho em termos de consciência, respeito, entendimento das normas ali fixadas.
Mas, sem dúvida alguma, ainda vivemos um grave problema de relacionamento, que cabe à sociedade brasileira em geral e ao Estado resolver. Sabe-se que, aqui, a democracia é uma conquista recente, consolidada na Constituição Federal de 1988, que instituiu, entre outros, direitos e garantias individuais que reafirmam o respeito ao ser humano enquanto verdadeiro cidadão.
O legislador constituinte entendeu por bem inserir a proteção do consumidor, não apenas no contexto do que se poderia chamar de garantias individuais (artigo 5º, inciso XXXII), mas, também, como princípio básico da ordem econômica (artigo 170, inciso V). Assim é que a defesa do consumidor passou a fazer parte da política pública, cabendo a todos os agentes da administração estatal trabalhar para que se cumpra aquilo que a lei determina.
Esse dever, de certo modo, vem sendo cumprido mediante programas e campanhas educacionais, em prol do consumo consciente, mediação de problemas individuais e, ainda, repressão às ofensas coletivas. Conseqüência lógica dessa atividade foi a melhoria do padrão de qualidade dos produtos e serviços colocados no mercado, evolução forçada pelo nível de consciência do consumidor, preparado para protestar sempre que o desrespeitam.
Mas o que o legislador não previu é que surgiria uma pedra no meio do caminho. A partir da segunda metade da década de noventa, no final do século passado, iniciou-se o chamado processo de privatização dos serviços públicos. Ali é que se instalou o conflito. Os órgãos de defesa do consumidor começaram a receber centenas de reclamações contra as empresas concessionárias. E, pior, aquilo que, antes se resolvia de forma conciliatória, passou a ser objeto de litígio, em que se discute até mesmo a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor.
A privatização dos serviços públicos veio condicionada à criação de agências que regulariam as atividades, levando em conta a essencialidade deles na vida do cidadão. Mas essa criação baseou-se em modelo incompatível com a realidade socioeconômica do País. Um modelo que considera, tão-somente, aspectos econômicos e que transformou as agências em órgãos que, ao mesmo tempo, a viabilidade da prestação do serviço público e a saúde financeira das empresas. Uma escolha sempre conflituosa, na qual quem sai perdendo é, quase sempre, a parte mais fraca – o consumidor.
Desde a privatização, foram editadas resoluções que afrontam o Código de Defesa do Consumidor. Isso, além de ferir o ordenamento jurídico (pois resolução não tem poder para revogar leis), contraria as obrigações do próprio Estado.
As agências, como órgãos públicos, devem respeito aos princípios constitucionais e devem estar comprometidas com a defesa do consumidor. Nesse quadro, cabe aos órgãos de defesa do consumidor a tarefa de lutar, ainda que sozinhos, contra as empresas concessionárias de serviços públicos, de modo que se respeite o Código de Defesa do Consumidor.
O problema (na verdade o desafio) é definir de que maneira eles, sem apoio das agências, conseguirão fazê-lo, num mercado que é, ao mesmo tempo, essencial e monopolista. Não se pode suspender o serviço e, sem opção, o consumidor não pode escolher a empresa que melhor o atende. As multas impostas às operadoras das quais elas sempre recorrem, jamais são pagas, o que gera impunidade e realimenta a conduta desrespeitosa.
É fundamental a união de todos os setores preocupados com os direitos do consumidor, de maneira que se forme um sistema coeso, capaz de sustentar o confronto judiciário e se exerça pressão política em prol da mudança do modelo regulatório. Caso contrário, as estatísticas sempre apontarão para o mesmo problema: os serviços públicos, cuja qualidade vai muito mal.
Gustavo Marrone ([email protected]) é diretor-executivo da Fundação Procon-SP